É sábado.
A noite está começando.
Proprietários e funcionários dos bares do Largo da Ordem se preparam para uma noite agitada.
Afinal, esse é um dos principais pontos da noite curitibana, onde é possível encontrar gente descolada, diferenciada, turistas, artesãos, boêmios, moradores de rua, usuários de droga e todo tipo de transeunte noturno.
Para os que preferem a rua aos bares, a cerveja não apresenta um bom custo-benefício. Ali, especialmente naquele ponto, é mais comum encontrar vinhos baratos e o tradicional tubão.
Próximo à escultura conhecida como “Cavalo Babão”, alguns jovens começam a se reunir a partir das 18h30.
Uma moça com uma caderneta na mão circula entre o grupo que vai aumentando. Enquanto isso, um rapaz dorme com a cabeça encostada na placa da escultura e outro conversa com os presentes sobre Darwin e afirma que “Deus odeia tudo nóiz”.
É ali, ao ar livre, quase em frente à igreja que semanas atrás sediou o casamento de uma deputada, onde acontece o Slam Contrataque.
Realizado desde abril em Curitiba, o encontro de poesia organizado de maneira independente segue um movimento que tem ganhado visibilidade nas grandes cidades.
São as slams, batalhas de poesia no formato spoken word que nasceram em Chicago, em 1984, por criação de Marc Smith.
No Brasil, tornaram-se populares os vídeos de pessoas declamando poemas engajados em praças públicas paulistanas, sendo aplaudidos pelo público e recebendo notas de jurados.
Na terra do pinhão, no entanto, o julgamento, a batalha e o vencedor não tem tanta relevância. No Contrataque, o que realmente importa é participar, levar a sua mensagem e proclamar o espaço público como local destinado à poesia.
Longe das bibliotecas e livrarias elitizadas, é dessa maneira que o evento garante o direito à literatura.
Afinal, se existem direitos inquestionáveis como da alimentação, moradia, vestuário, instrução, saúde, liberdade individual, amparo da justiça pública e resistência à opressão, também deveriam ser considerados os direitos à crença, à opinião, ao lazer e, por que não, à arte e à literatura.
Essa é a posição assumida pelo crítico Antonio Candido em O direito à literatura.
‘A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante’. Antonio Candido – O Direito à Literatura
Falecido no último mês de maio, Candido coloca a literatura como uma questão relacionada aos direitos humanos a partir do pressuposto de que o que é fundamental para mim também deve ser para o próximo.
Essas atribuições básicas, no entanto, são tratadas no ensaio como algo difícil de ser fixado e justamente por isso deveríamos tratar a cultura não como um privilégio, mas como basilar. Para demonstrar a mobilidade dessa fronteira, o autor recorre a um exemplo prático:
“O fato é que cada época e cada cultura fixam os critérios de incompressibilidade, que estão ligados à divisão da sociedade em classes, pois inclusive a educação pode ser instrumento para convencer as pessoas de que o que é indispensável para uma camada social não o é para outra. Na classe média brasileira, os da minha idade ainda lembram o tempo em que se dizia que os empregados não tinham necessidade de sobremesa nem de folga aos domingos, porque, não estando acostumados a isso, não sentiam falta”.
Por meio desse relato que demonstra uma situação absurda, podemos perceber um avanço com relação às garantias. Esse progresso, no entanto, jamais seria cedido por generosidade. Para obter esses recursos, foi preciso uma força contrária que pressionasse as barreiras. Um contra-ataque.
O evento que chegou à sua quarta edição em 29 de Julho tem esse objetivo, demonstrar a possibilidade de ter acesso à literatura sem que ela venha das mãos de quem detém o poder econômico.
Para isso não é preciso frequentar as altas rodas literárias, nem gastar dinheiro para comprar livros ou se submeter à barreira social dos shopping centers onde estão a maioria das livrarias.
Basta ouvir o que a rua tem a dizer.
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É justamente esse viés coletivo que deve ser usado para enxergar o caráter humanizador da literatura:
“Alterando o conceito de Otto Ranke sobre o mito, podemos dizer que a literatura é o sonho acordado das civilizações. Portanto, assim como não é possível haver equilíbrio psíquico sem o sonho durante o sono, talvez não haja equilíbrio social sem a literatura. Deste modo, ela é ator indispensável de humanização e, sendo assim, confirma o homem na sua humanidade, inclusive porque atua em grande parte no subconsciente e no inconsciente. Neste sentido, ela pode ter importância equivalente à das formas conscientes de inculcamento intencional, como a educação familiar, grupal ou escolar. Cada sociedade cria as suas manifestações ficcionais, poéticas e dramáticas de acordo com os seus impulsos, as suas crenças, os seus sentimentos, as suas normas, a fim de fortalecer em cada um a presença e atuação deles”.
Dessa maneira, de acordo com o que aponta o sociólogo, a poesia slam pode ser encarada como uma cria dos centros urbanos, onde, não tendo acesso aos meios de comunicação privilegiados, os jovens optam pelas áreas públicas como local de manifestação. É nesse ambiente onde é possível se expressar, ouvir os pares e se humanizar:
“Entendo aqui por humanização (já que tenho falado tanto nela) o processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante”.
No caso do Slam Contrataque, essa reflexão apontada pelo literato se torna possível por meio de uma arte que assume uma posição mais clara diante das injustiças sociais.
Ali estão presentes a crítica aos governantes, a defesa dos direitos LGBT, o flerte com o rap, a luta contra o machismo, o olhar para o outro sem julgamento, o objetivo transformado em subjetivo que se posiciona como resistente perante a cidade. Enfim, toda forma de expressão de quem exerce as suas liberdades não só como receptor, mas também como criador da própria literatura.
No caso do rapaz que dormia, optou-se pela dispensa desse direito, mas mesmo para ele esse bem esteve assegurado.