Que contrassenso. Essa semana, o Ministério da Saúde divulgou a Pesquisa Vigitel com o seguinte dado: em 10 anos, o número de pessoas com obesidade no Brasil saltou 60% — índice de brasileiros com a doença passou de 11,8% para 18,9%. Diabetes e hipertensão também cresceram. Ao mesmo tempo, nunca falamos e consumimos tantas dietas como nesse período, de 2006 a 2016.
Maus hábitos alimentares e falta de atividade física regular são os principais causadores, de acordo com o ministério, e já estamos carecas de saber. O problema é que, nesse momento, o Estado se exime de sua responsabilidade não pela falta de políticas públicas de saúde, mas em não admitir a complexidade do tratamento e todos os fatores que geram o problema, que passam pelo social e até mesmo pelo trabalho.
O Brasil conta com uma Política Pública elogiada em todo o mundo, o “Guia Alimentar para a População Brasileira“, que quer resgatar a maneira regional de comer: o consumo de feijão e arroz, base da cultura alimentar brasileira, vem caindo, segundo o mesmo levantamento do Vigitel. Porém, há questionamentos sobre a aplicação do Guia na prática: recentemente, assisti uma palestra de uma nutricionista, doutora na USP, sobre o tema e a questionei como o Guia é trabalhado na saúde pública. Ela respondeu que existe uma certa censura em relação ao documento, pois ele deixa claro os malefícios e a necessidade de redução de produtos ultraprocessados, por exemplo. Tudo o que a indústria não deseja.
O Brasil conta com uma Política Pública elogiada em todo o mundo, o ‘Guia Alimentar para a População Brasileira’, que quer resgatar a maneira regional de comer.
Além disso, a receita “fazer exercícios + fechar a boca” não é tão certeira e infalível assim. Primeiro, porque somos programados para o repouso. O médico Drauzio Varella já explicou em alguns textos que é da natureza humana poupar energia – os animais se exercitam apenas para fugir de suas presas ou para caçar. Por isso é tão chato nos acostumarmos a praticar um esporte. Requer bastante disciplina, incentivo, espaços ao ar livre e infraestrutura (como ciclovias, por exemplo).
Nutricionista militante “anti-dieta”, a Dra. Sophie Deram, autora de O Peso das Dietas, acredita que as restrições alimentares (que cortam grupos como carboidratos, por exemplo) podem ter um papel importante na piora desses índices. Segundo o livro, 49% de pessoas que passam por um regime tem compulsões pós-dieta, e 2/3 recuperam mais peso do que tinham perdido. “O processo da dieta aumenta a propensão para ganhar peso, especialmente gordura”, explica a autora no livro, que lembra, ainda, que as pessoas com excesso de peso são as mais preocupadas com o que comem. Porque comer acaba se transformando em um problema.
E aí: as pessoas sabem que precisam se exercitar e começar a comer melhor. Mas, às vezes, não têm permissão para tal: com jornadas de trabalho cada vez mais longas, somado a um grande tempo perdido no trânsito ou no transporte público, de que forma é possível jogar a responsabilidade apenas nas costas do indivíduo? Com esse ritmo de vida, qual é o ânimo que resta para sair dar uma corridinha, ou, até mesmo, fazer o jantar?
O Guia é louvável em dar essa orientação e valorizar o ato de cozinhar. Também salienta fatores importantes como a organização que, talvez, estejamos negligenciando. Entretanto, não é possível mudar esse cenário contando apenas com o esforço de cada um. O problema é complexo: é preciso proporcionar um mínimo de qualidade de vida para que se possa dar um primeiro passo.
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