Quando as taças cheias de sidra Cereser se tocarem às onze e cinquenta e nove do último dia do ano, nosso Galvão Bueno interior gritará: Acabou! Acabou!!
Que ano, meus amigos. Que ano de merda.
“Ora, cronista, fale por você, o meu ano foi maravilhoso, eu até consegui cancelar a tv por assinatura em menos de uma semana”, diria um leitor. “Meu ano foi ótimo, com muita saúde, mesmo eu almoçado trocentas vezes no Burger King”, diria um outro.
Ok. Longe de mim discordar e mais longe ainda de mim concordar com isso e tirar o emprego do Augusto Cury ventilando otimismo pré-fabricado.
Mas deixemos a seleção de desgraças pro coitado do estagiário que terá que editar a Retrospectiva 2016, pois o que importa é que entre um desastre aéreo aqui e um amigo secreto da firma acolá, nós sobrevivemos (pelo menos eu acho que sobrevivemos, ainda faltam uns 15 dias. Aliás, se alguma coisa acontecer até la, gostaria de deixar os meus livros pro meu irmão. Menos os da Cosac Naify, estes é pra vender e comprar um iate para minha mulher e uma mansão para minha mãe).
Enfim, a gente chega ao final do ano um tanto tontos, arranhados, andando com aquele passo meio torto lá do poema do Leminski, mas pelo menos chega com mais histórias.
Enfim, a gente chega ao final do ano um tanto tontos, arranhados, andando com aquele passo meio torto lá do poema do Leminski, mas pelo menos chega com mais histórias. Deve haver algum valor neste acúmulo de experiência que viram narrativas em nossa mente, nem que seja pra gastá-lo se lamentando em mesa de boteco.
“Lembra aquele ano? Foi foda, né?”.
“Nem me fale, acordo gritando mijado de madrugada até hoje”.
Na área da saúde existe um temo técnico chamado “debridamento”. Debridar é o ato de remover a pele morta ao redor de um ferimento, como uma queimadura, por exemplo. O tecido é retirado para evitar infecções e ajudar na cicatrização.
É por aí. Tá vendo a metáfora quicando na sua frente?
Mais do que carregar cicatrizes de tudo aquilo que nos feriu, talvez seja importante remover de vez algumas podridões interiores. Dói pra caralho, deixa umas marcas horríveis, mas ajuda a seguir em frente.
O detalhe é que eu não tenho ideia de como se faz isso. Talvez o Augusto Cury manje de debridamento. Só sei que o tempo às vezes ajuda.
O Ano Novo tem disso de parecer que as coisas vão zerar. Não vão, a gente sabe. As mágoas do Natal tão ali bem fresquinhas ainda, junto com os restos não tão fresquinhos de comida com uva passa. É só mais um dia e tal, mas datas assim são importantes para demarcar os ciclos, servem para fotografar o tempo.
E aí a gente tenta ignorar a ironia de que um círculo nos leva para o mesmo lugar, pois pelo menos há boas chances de que ao chegarmos neste mesmo lugar, nós é que não seremos mais os mesmos.
Heráclito de Éfeso disse algo parecido, mas ele usou um rio pra explicar.
É isso, quando tomar o primeiro gole de sidra, esqueça o show da virada na tv que está no mute, ignore o tio bêbado vomitando Kaiser quente na garagem, não veja as mensagens de Whatsapp dos amigos que estão na praia e não lhe chamaram, enfim, concentre-se apenas no que é mais importante, concentre-se em debridar.