Assisti a um episódio de Grey’s Anatomy (me deixem) em que o grupo de médicos novatos precisa atender uma jovem vítima de estupro, que além da agressão sexual, também foi espancada. Após fazerem os primeiros procedimentos e orientarem a aplicação das medicações na paciente, eles tentam descansar um pouco indo até o andar em que fica a maternidade do hospital, só para relaxar olhando os bebês.
É um cena bonita, talvez até meio cafona, em que eles se questionam como aquelas criaturinhas ali, tão bem cuidadas, acabam se tornando aquela pessoa que está lá embaixo sofrendo o pior momento da sua vida. As médicas ficam se perguntando sobre o que aconteceu nesse meio tempo entre o berçário e a maca do setor de emergência.
O prédio do hospital é o mesmo, mas entre um quarto e outro, há toda a brutalidade do tempo. O que acontece nesse hiato, como sabemos de forma até meio dolorida, é a vida e o elemento comum entre estes dois momentos é a nossa evidente fragilidade.
O que acontece nesse hiato, como sabemos de forma até meio dolorida, é a vida e o elemento comum entre estes dois momentos é a nossa evidente fragilidade.
A despeito da convicção secreta de que nós somos eternos (só eu e você, os outros não), volta e meia o mundo trata de nos lembrar de nossa finitude. Como assim o protagonista da novela morreu de verdade? Quantas pessoas morreram no atentado do outro lado do planeta? E no acidente de ônibus perto da minha casa?
E os números, tão violentos em sua objetiva indiferença, só aumentam, até significarem apenas isso, algarismos alinhados de maneira cada vez mais racional e obscena. Como se cada número ali não fosse uma pessoa, que não tivesse um nome, um passado, uma escova de dente no armário, uma assinatura de revista que agora ninguém vai ler. E não se trata de insensibilidade, pois esse é o caminho natural, afinal, quem daria conta de suportar tantas histórias?
Entre o berçário e a maca de um ambulatório, há toda a maravilha da experiência humana, o aprendizado, os amigos, os livros do Kafka, o sexo e o sorvete napolitano, mas há também o lado sombrio, feito de desencanto e violência, que tentamos ignorar, ou mantê-lo em segurança em algum lugar de nossa mente, para que os dias não sejam insuportáveis e o medo não seja paralisante.
Parte do trabalho dos médicos lá da série, assim como de qualquer pessoa enfrentando o cotidiano, é justamente esquecer momentaneamente tudo isso para poder fazer o seu trabalho. E a expressão “tudo isso” não é tão simples, pois ela contém pessoas, sentimentos, experiências, etc.
Enfim, isso é parte daquilo que nos compõe, essa fragilidade desoladora diante da constatação de que às vezes não perduraremos nem mesmo como memória.
É isso, a vida é só um vulto.
Cartola nos avisou do moinho há tempos, mas isso não diminui o nosso espanto sempre que nos vemos diante do barulho ensurdecedor de suas engrenagens.