O despertador tocou. Abriu só o olho esquerdo, “mas já?”, desligou. Forçou o corpo para a frente e não conseguiu se levantar da cama. Tentou mais uma vez. E mais outra. “Perae, tem alguma coisa errada”.
– Não vai levantar coisa nenhuma, vai ficar aqui comigo. Você não precisa de trabalho, de amigos, só precisa de mim.
– Mas que porra é essa?
Era isso: a cama dele não apenas falava, como aparentemente era uma maníaca obcecada e queria mantê-lo como refém.
– Não cuspa no colchão que dormiu.
– Eu quero acordar!
– Você não está sonhando, bobinho. Está acordadíssimo – o que é uma perda de tempo, por sinal, com aquele frio lá fora.
– Impossível. É a cara do meu cérebro criar uma cama falante sequestradora.
Fez uma nova tentativa de se levantar. Sem sucesso. Era como se a cama o estivesse abraçando, mesmo sem braços.
– Vamos ficar quietos e dormir mais cinco minutinhos.
Era como se a cama o estivesse abraçando, mesmo sem braços.
– Vamos ficar quietos e dormir mais cinco minutinhos.
– Não! Eu preciso ir trabalhar, puta que pariu! Fiquei até de madrugada fechando o relatório de abril, vou entregar isso hoje nem que eu tenha que arrastar você junto pro escritório.
– Shhhhhh. Quietinho.
– Me deixa levantar! Socorro!
– Ai, mas tá bem difícil dormir com você gritando assim. Eu tô aqui fazendo um favor. Quantas vezes você desejou voltar a dormir ao invés de pegar três metrôs lotados com cheiro de muçarela estragada logo cedo? Aproveita a chance, vira aí e dorme.
– Mas que chance? A chance de ficar desempregado?
– Você é um ingrato!
– Ah, mas você não pode falar assim comigo, mesmo. Eu arrumo você todo dia, troco o lençol uma vez por semana, falo pra todo mundo o quanto sinto sua falta durante o expediente, “queria minha cama agora”, pra você me chamar de ingrato?
O travesseiro em que ele estava deitado foi puxado e jogado na parede.
– In-gra-to.
– Por quê? E por que hoje?
– Por que hoje o quê?
– Não me deixar levantar logo hoje, um dia tão importante. Eu fiz o melhor relatório da história dos relatórios, poderia ser promovido.
– Uma cama bem resolvida precisa reservar data no calendário para demonstrar seu amor? Senti que era hoje e fiz.
– E agora, o que você pretende? Me manter dormindo em você pra sempre?
– Não pra sempre, alguns meses. Você pode hibernar.
– Você é uma cama psicopata, sabia?
– Você vai se arrepender por ter falado isso.
Desta vez, foi ele arremessado na parede. Bateu a cabeça, caiu no chão e abriu os dois olhos. Alguns segundos estático e o alívio, “Era um pesadelo! Era pesadelo, caramba, pesadelo!”. Levantou e ficou olhando para a cama, imóvel – como deve ser.
Virou-se para o rádio relógio: restavam duas horas antes do despertador tocar. Pegou o edredom e foi para o sofá.