Seu Joaquim – ou Seu Joca, como os moradores do bairro insistiam em chamá-lo – acordou antes dos passarinhos cantarem e foi logo trabalhar. Tinha um amigo para buscar na saída da fábrica e depois iria para o ponto da rodoviária, onde faria uma pausa para o delicioso pão na chapa da Lanchonete do Aquiles antes de pegar no batente.
No mesmo horário, Raimundo roncava no banco do ônibus de viagem, ainda vestindo a roupa de palhaço da festa à fantasia da noite anterior. Sentada ao seu lado, uma idosa reclamava em voz alta a cada vez que a peruca do rapaz encostava em seu cabelo roxinho.
Joca sentou no balcão da lanchonete, faminto. “O de sempre”, falou para Nice, a funcionária mal-humorada que o atendia todas as manhãs, há mais de quinze anos. Engoliu o lanche a seco e foi dar uma olhada rápida nas manchetes do dia na banca de jornal ao lado. Cumprimentou o dono, “grande Josias”, e foi para o carro, estacionado na fila dos taxistas.
Raimundo acordou assustado com a parada brusca do ônibus. “Vixe, já chegou?” e sorriu para a velhinha, que o ignorou. A fila para descer na rodoviária era grande, o que deu a ele tempo suficiente para mais um cochilo antes de se levantar.
“Sentada ao seu lado, uma idosa reclamava em voz alta a cada vez que a peruca do rapaz encostava em seu cabelo roxinho.”
Joca estava no único carro que havia sobrado na fila, o que significava que, querendo ou não, seu dia corrido estava prestes a começar. Deu a partida, plugou o pen drive com as melhores do Amado Batista e ajustou o retrovisor a espera do primeiro cliente.
Raimundo andou lentamente até a porta de vidro enquanto todas as pessoas olhavam para ele, fazendo comentários ou soltando risadinhas. Ele não ligava, só queria ir para casa e tirar aquela maquiagem que tanto coçava. Avistou o táxi de Joca e apertou o passo em sua direção.
Seu Joca viu Raimundo de longe, arregalou os olhos, “minha Nossa Senhora”, e começou a suar.
Raimundo continuou andando rapidamente em sua direção.
Joca, que tinha pavor de palhaços desde menino, começou a rezar desesperadamente – o que não adiantou muita coisa, já que em poucos segundos Raimundo estava dentro do seu carro.
“Avenida São Miguel, por favor”, disse Raimundo em meio a um bocejo, antes de ser surpreendido pelo grito do taxista: “puta que pariu”.
Joca saiu do carro correndo, largou a porta aberta e desapareceu dentro da rodoviária. Inconformado no banco de trás, Raimundo abriu o aplicativo do Uber.