Saiu o resultado. Era um alívio, pois ao menos acabava com a aflição da dúvida. Mas seria melhor se a conclusão tivesse sido a oposta, se a onda tivesse colapsado de outro modo – se o gato de Schrödinger tivesse permanecido vivo. Enfim, agora era verdade: o vírus que havia atravessado o mundo, o vírus que, a exemplo do próprio Diabo, vosso inimigo, andava ao redor como leão, rugindo e procurando a quem devorar, havia penetrado no seu frágil organismo.
O curioso é que ele não temeu a morte – ora, a morte, por pior que fosse, era ainda o término de uma porção de problemas. Não há boletos no além, ele teria dito, se estivesse de bom humor. Dizem que só para a morte não há solução, e talvez seja verdade, mas temos cada qual um punhado de problemas que carregaremos a vida inteira sem conseguir resolver. E foram esses problemas, e não a morte, que acudiram à sua memória quando soube do seu diagnóstico.
Ele ainda imaginou que, talvez, abrissem uma exceção para ele, ah, a gente sempre acha que nosso caso é diferente, sem falar que estamos no Brasil, no Brasil as coisas não precisam ser tão certinhas assim, e só por isso é que ele teve coragem de perguntar:
– Então não vou poder sair de casa?
Assentiram, tinha que ficar em casa, mas era uma pergunta tão óbvia que nem prestaram muita atenção, pois todos sabem que os infectados devem ficar isolados em casa até se recuperarem. Pela sua cabeça, passou então a questão do seu emprego. Ele não estava certo de que receberia por esse período de inatividade. Direitos, direitos, com frequência lhe falavam dos direitos que tinha como trabalhador, só que o seu emprego – e não é o único assim – parecia estar ainda em período anterior a Getúlio Vargas.
É um crime um homem sair de casa contaminado pelo vírus, mas não é um crime afastar um homem de toda a humanidade.
Outra pessoa talvez acionasse a Justiça, mas ele achava que não devia, pois havia concordado com as regras do jogo no momento em que foi contratado. E, de todo modo, isso demanda tempo, sem falar de dinheiro. Ah, se não lhe pagassem por aqueles dias – quantos dias, 10, 15, 20? –, como poderia dar conta do aluguel, que já consumia quase todo o salário? E se o mandassem embora? Era bem possível que uma coisa dessas acontecesse e ele não tinha forças e nem vontade de se insurgir contra quem quer que fosse.
Mas ainda que as coisas corressem bem, ainda que um lampejo de humanidade fizesse com que ele mantivesse a sua renda naqueles dias, ele tinha outra preocupação dentro de si. Havia pensado sobre isso nos dias de incerteza que antecederam ao resultado e agora tudo havia desabado sobre ele, com a força das ideias que se concretizam no mundo material.
– E como eu faço para ir ao supermercado?
Perguntou esperando que alguém pudesse se compadecer da situação, mas como seria possível, se ninguém sabia a motivação da sua pergunta? Ouviu, em resposta, o óbvio, que fosse pedir à família, aos amigos, aos vizinhos… E ele não soube como rebater aquilo, pois sentia vergonha de dizer que não tinha família e nem amigos. Quanto aos vizinhos, quem é que sabe deles? É cada um na sua e ele não saberia sequer reconhecer um vizinho que avistasse na rua.
Então ele voltou para casa, a casa em que vivia sozinho e onde deveria permanecer trancafiado, pois do contrário seria acusado de praticar um crime. É um crime um homem sair de casa contaminado pelo vírus, mas não é um crime afastar um homem de toda a humanidade. Claro, ele pode usar o celular, pode pedir comida pronta, mas será certo fazer com que o entregador se relacione com um infectado?
Não sabia o que fazer, apenas estava cansado daquilo tudo, daquela eterna luta para sobreviver e provar que tem algum valor e também merece coisas boas na vida. A morte, ah, a morte era o de menos.