Nos últimos três meses, os da pandemia, tem acontecido uma coisa sem precedentes na história da humanidade, que é a preocupação com o conforto dos passageiros no transporte público. Descobriu-se que as pessoas ficam mais aglomeradas dentro dos ônibus do que em qualquer festinha clandestina que eventualmente seja organizada. Um único ônibus, no seu horário de pico, é capaz de jogar no lixo toda a retórica de distanciamento social que hoje norteia nossas ações de combate ao vírus. E foi só então que as pessoas que não andam de ônibus resolveram se preocupar com a forma como os trabalhadores são carregados de lá para cá todos os dias. Não é que sintam algum tipo de empatia por eles. É apenas o temor de que as pessoas que andam de ônibus sejam transmissoras do vírus para aqueles que não andam.
Em consequência, houve em muitos lugares a extraordinária recomendação de que os ônibus só poderiam sair dos terminais com todas as pessoas sentadas. Antes do coronavírus, podia-se viajar em pé, podia-se viajar encostado na porta, podia-se viajar numa completa orgia de braços e cotovelos, sem que isso provocasse a menor comoção pública. Há muito tempo que os ônibus passaram a ser produzidos com o nítido propósito da aglomeração. Sabe-se que um banco ocupa espaço demais, e por isso há cada vez menos nos ônibus. Estávamos seguindo na direção de um futuro em que não haveria mais banco algum nos ônibus. Criaríamos veículos que seriam verdadeiras obras-primas da concisão – muita gente em um espaço limitadíssimo. E eis que, agora, vieram com essa espantosa novidade: é preciso que as pessoas viajem sentadinhas e distantes umas das outras.
Naturalmente, não há quem esteja respeitando essa decisão. Já havíamos deixado crescer demais o problema da aglomeração coletiva para que, agora, na base de algumas canetadas, fosse possível resolvê-lo. Até então, a aglomeração não era um problema. Podia-se trocar o governador e o prefeito, podia ser um da esquerda e um da direita, que todos sabiam que nada seria feito para que as pessoas deixassem de viajar como animais que vão para o abate. Não há notícia de um único prefeito que alguma vez tenha perdido o sono pensando na humilhação, pensando na desumanização da viagem no transporte público. Dizia-se uma ou outra frase de efeito aqui e ali, mas todos os políticos sempre tiveram uma coisa como certa: é impossível resolver a questão do transporte.
Estávamos seguindo na direção de um futuro em que não haveria mais banco algum nos ônibus. Criaríamos veículos que seriam verdadeiras obras-primas da concisão – muita gente em um espaço limitadíssimo. E eis que, agora, vieram com essa espantosa novidade: é preciso que as pessoas viajem sentadinhas e distantes umas das outras.
E olhe que, durante todos esses anos, sempre se transmitiu vírus no transporte coletivo, inclusive para as pessoas que não o utilizam. Podiam não ser o corona, podiam ser o de uma simples gripe, mas é de se presumir que vírus que levaram à morte foram igualmente transmitidos no transporte público, e tão somente porque seria impossível não transmiti-los, no meio daquela esfregação que se tornou hábito. A Constituição nunca alcançou o transporte público – ali, aquela história de “princípio da dignidade da pessoa humana” é apenas um conto da carochinha. Ninguém é digno, ninguém é pessoa e ninguém é humano dentro do ônibus. E até fevereiro isso não tinha a menor importância para o resto do mundo.
Ali estão centenas de cristãos, empurrados em cima de outros tantos cristãos – a maioria deve ser cristã mesmo. Ali está o Cristo crucificado outra vez, porque ali está o ser humano destituído de toda a dignidade que se acredita restaurada pelo Cristo. E, no entanto, nunca uma bancada evangélica resolveu se insurgir contra esse estado de coisas. Todos estão muito preocupados com “a vida”, marchas são feitas a favor dela, mas depois que essa vida nasce, cresce, se torna um adulto e passa a utilizar o transporte público para se locomover, ela perde importância e é abandonada por aqueles que amam o próximo. É a vida de alguém que nasceu – a vida de alguém que não foi abortado – que é desrespeitada, vilipendiada, o dia todo, todos os dias, no transporte público. Nos púlpitos desse país, prega-se a prosperidade. Mas o que é a prosperidade? É ter um carro e nunca mais precisar andar de ônibus. Andar de ônibus é, nas igrejas, algo a se superar com a ajuda de Deus – é, portanto, algo do diabo. E deve, realmente, ser um Deus do impossível esse que presenteia os seus fiéis com carros individuais para que ocupem cada vez mais as ruas, como se nunca houvesse um limite.
Sabemos que a preocupação com os ônibus irá passar junto com a pandemia, mas há uma revolta silenciosa sendo germinada. E, no dia em que ela brotar da terra, será muito pior do que em 2013.