1939 é um ano difícil de esquecer. Com a invasão do território polonês, em 1º de setembro, por tropas da Alemanha e da Eslováquia, desencadeou-se a Segunda Guerra Mundial, mudando os rumos da história. Meses antes, em julho, havia chegado aos cinemas da França A Regra do Jogo, clássico do realismo poético de Jean Renoir que retrata a classe alta do país, e suas relações com seus subalternos, que embora tenha um certo tom farsesco, brincando com os nortes éticos e morais dessa elite, também deixa vazar, no decorrer de toda a narrativa, o clima de incertezas reinante na Europa pré-guerra.
Do outro lado do Atlântico, há exatos 80 anos, Hollywood vivia um de seus momentos mais pulsantes, apesar de os Estados Unidos estarem saindo da Grande Depressão, com os estúdios funcionando a pleno vapor. Ao longo de 1939, chegaram às salas de cinema títulos que não apenas fariam enorme sucesso de público e de crítica, mas ingressariam na história de sétima arte como referenciais: o épico histórico E o Vento Levou... e o musical O Mágico de Oz, ambos dirigidos por Victor Fleming, e o western No Tempo das Diligências, de John Ford. Todos os três foram indicados ao Oscar de melhor filme no ano seguinte.
O grande vencedor da festa do Oscar, realizada no Hotel Ambassador (em seu espaço de espetáculos, chamado Coconut Grove), em 29 de fevereiro de 1940, foi …E o Vento Levou. O épico romântico foi indicado em 13 categorias, um recorde até então, e ganhou oito estatuetas: filme, direção, atriz (Vivien Leigh), atriz coadjuvante (Hattie McDonald), roteiro, fotografia, montagem e direção de arte. Levou, ainda, mais dois prêmios especiais: um pelo uso inovador da fotografia em cor (foi o primeiro longa colorido a vencer o Oscar de melhor filme); e outra pelo uso coordenado de equipamento cinematográfico na produção do filme.
Falar sobre …E o Vento Levou não é tarefa fácil para mim, que o assisti na década de 1970 com uns 11, 12 anos, no saudoso Cine Condor, cujo prédio, abandonado, fica do outro lado da rua de onde hoje trabalho. Fui levado pela minha avó, Hilda, que fez questão de que eu visse seu filme favorito da vida tão logo eu tivesse idade para compreendê-lo. Guardo na memória essa sessão de quatro horas, com direito a intervalo, como um momento nosso, de intensa proximidade, fundamental em minha história de cinéfilo.
Quarto colocado na lista do American Film Institute (AFI) dos 100 maiores longas-metragens produzidos por Hollywood até hoje, atrás apenas de Cidadão Kane (1941), Casablanca (1942) e O Poderoso Chefão (1972), é uma obra que dá margem a muita discussão.
Falar sobre …E o Vento Levou não é tarefa fácil para mim, que o assisti na década de 1970 com uns 11, 12 anos, no saudoso Cine Condor, cujo prédio, abandonado, fica do outro lado da rua de onde hoje trabalho. Fui levado pela minha avó, Hilda, que fez questão de que eu visse seu filme favorito da vida tão logo eu tivesse idade para compreendê-lo. Guardo na memória essa sessão de quatro horas, com direito a intervalo, como um momento nosso, de intensa proximidade, fundamental em minha história de cinéfilo.
O filme apresenta uma visão sentimental, senão romântica, e certamente nostálgica da Guerra Civil Americana (1861-1865), na qual o Velho Sul dos confederados, que defendiam a manutenção da escravidão, é uma espécie de espaço idealizado.
O conflito é menos o tema central do filme e mais um pano de fundo histórico para a jornada de sua heroína, Scarlett O’Hara, filha de um fazendeiro da Geórgia, papel para o qual a britânica Vivien Leigh foi escolhida entre inúmeras candidatas, algumas delas grandes estrelas de Hollywood de sua época, como Katharine Hepburn, Joan Crawford, Bette Davis (que não se interessou pela personagem) e Paulette Goddard.
Criticado por trazer uma visão saudosista de uma sociedade escravagista e socialmente estratificada, …E o Vento Levou permanece um marco do cinema clássico norte-americano porque conta uma boa história e, na maior parte de seus 220 minutos de duração, em grande estilo e com inegável eficiência dramática.
Mais do que exatamente um filme histórico, …E o Vento Levou se sustenta aos olhos de hoje como um magnífico estudo de personagem. Baseado no romance homônimo de Margaret Mitchell, lançado em 1936 e vencedor dos prestigiados prêmios Pulitzer e National Book Award, o livro traz como protagonista não uma jovem típica de meados do século 19, quando a trama se desenrola, mas uma mulher moderna dos anos 1930, que, durante a Grande Depressão, teve de sair de casa e ir à luta.
Graças ao desempenho cheio de nuances de Vivien Leigh, na vida real uma mulher complexa e problemática, Scarlett se tornou uma das personagens mais fascinantes do cinema, dona de um espírito independente e voluntarioso.
Já nas páginas do livro de Margaret Mitchell, é perceptível o anseio da escritora de afastá-la do perfil mais delicado e frágil de uma heroína romântica do século 19, e a influência sobre a autora das estrelas do cinema de sua época. Haveria na gênese de Scarlett O’Hara traços das personas cinematográficas de atrizes como Louise Brooks, Mae West e Jean Harlow.
Scarlett é uma mulher que anseia ter controle sobre seus desejos, inclusive os sexuais. Também busca, sem necessariamente precisar de uma figura masculina a seu lado, dar conta de sua sobrevivência econômica, primeiro plantando algodão e, depois, administrando um empreendimento madeireiro.
O tempo todo Scarlett desafia o patriarcado: casa-se três vezes, mata um desertor ianque (das tropas do norte), tenta seduzir Ashley, casado com a doce (e conformada) Melanie (Olivia de Havilland, ainda viva com mais de 100 anos). Chega a banir o terceiro marido de seu leito para evitar uma gravidez indesejada – que mulher do século 19 tinha essas prerrogativas?
Mas essa postura rebelde e desafiadora enfrenta, sim, resistências, e também recebe punições. Scarlett encontra em Rhett Butler (Clark Gable) um amante/parceiro/rival à altura. Entre beijos e tapas o casamento é consumado em um estupro velado, o relacionamento é pontuado por um cabo de guerra (e de poder) entre o casal.
Em uma das primeiras cenas entre os dois ele diz a ela: “Você precisa urgentemente ser beijada. Esse é o seu problema. Você deveria ser beijada, e com frequência, e por alguém que saiba fazê-lo.” Há, nessa fala, um subtexto, que sugere, por meio das palavras insinuantes de Rhett, que Scarlett apenas será domada se encontrar um amante à altura, capaz de amansá-la, inclusive sexualmente.
Assim, mais do que a respeito da Guerra de Secessão, entre os estados do Norte e do Sul, …E o Vento Levou é um filme sobre os conflitos internos de Scarlett, tanto que termina com ela sozinha, abandonada por Rhett, à espera de um amanhã, que será “um outro dia”.
Não é possível, entretanto, deixar de falar sobre …E o Vento Levou também como uma obra cinematográfica de cunho histórico. Assim como Scarlett, Margaret Mitchell era sulista e o filme, já no seu texto abertura, deixa entrever um perigoso senso de nostalgia:
“Existia uma terra de cavalheiros e campos de algodão chamada o Velho Sul. Neste mundo bonito, galanteria era a última palavra. Foi o último lugar em que se viu cavalheiros e damas refinadas, senhores e escravos. Procure-a apenas em livros, pois hoje não é mais que um sonho. Uma civilização que o vento levou!”
O filme, assim como o livro, não se dá ao trabalho de, em um momento sequer, dizer que esse “mundo bonito” dos “cavalheiros do Sul”, foi construído, em grande parte, graças ao suor do trabalho escravo. Há, sim, personagens negros importantes. E, em defesa do filme, alguns com bastante complexidade, como a criada Mammy, que deu o Oscar de melhor atriz coadjuvante a Hattie McDaniel, primeira afrodescendente a vencer o prêmio da Academia – vale lembrar aqui que, na cerimônia de entrega do prêmio, ela e o marido se sentaram separados do resto da equipe do filme em uma mesa no fundo do salão, conforme as regras segregacionistas em vigor na época.
Mammy, uma escrava, é uma personagem sensata, espécie de voz da razão para a impulsiva Scarlett. Não há, contudo, nenhuma discussão mais profunda sobre relações inter-raciais, muito menos a respeito do papel do negro na ordem social retratada em …E o Vento Levou. Sabe-se que uma cena em que apareciam integrantes da organização racista Ku Klux Klan foi deixada de fora da montagem final, para evitar polêmicas com políticos sulistas que haviam feito ou faziam parte dela.
Mais do que uma obra de Victor Fleming, ironicamente premiado com o Oscar por sua direção, …E o Vento Levou é um filme do todo poderoso produtor David O. Selznick, que chegou a dirigir algumas sequências, assim como George Cukor, o primeiro a ser contratado e que foi demitido devido a conflitos com Clark Gable, que sempre foi o homem dos sonhos de dona Hilda.