Piscianos têm pés sensíveis, quase inadequados. Formam bolhas, machucam com facilidade, doem quando lhes é exigido esforço desmedido. Essa vulnerabilidade supostamente astrológica, da qual os mais racionais e céticos riem com certo desdém, gera insegurança. Afinal, somos seres bípedes, e se a parte do corpo que deveria proporcionar sustentação, solidez, revela-se instável, frágil, todo o resto da anatomia acaba, mais ou menos, padecendo.
Sou pisciano e, ironicamente, pedestre por convicção. Nunca tirei carteira de motorista. Cheguei a frequentar autoescola, fui aprovado com boa nota na avaliação teórica, porém não fiz a prova prática porque, ao volante, me vi como um impostor, um peixe fora d’água, para qual o trânsito sempre pareceu um ambiente hostil, gerador de intensa ansiedade. Portanto, andar tornou-se para mim um meio de locomoção essencial, e também fonte de completude.
Quando viajo, e mesmo na minha própria cidade, prefiro caminhar, quando disponho do tempo. Dessa forma eu percebo melhor, em mais detalhes, os movimentos ao meu redor. Adoro espiar pelas janelas abertas, buscar o olhar de quem passa, descobrir detalhes nas fachadas dos prédios, sentir a pulsação por onde passo. Mesmo nos percursos rotineiros, naqueles feitos dezenas, senão centenas de vezes, muitas vezes consigo perceber diferenças sutis.
Piscianos têm pés sensíveis, quase inadequados. Formam bolhas, machucam com facilidade, doem quando lhes é exigido esforço desmedido. Essa vulnerabilidade supostamente astrológica, da qual os mais racionais e céticos riem com certo desdém, gera insegurança.
Mas, quando a caminhada se estende por muitas horas, e isso geralmente ocorre em viagens, meus pés se transformam em uma espécie de alarme que anuncia minha falibilidade, minhas limitações físicas. Percebo que sou finito, porque sou pisciano e meus pés doem.
Na última viagem que fiz antes da pandemia, a uma cidade imensa, de largas distâncias e uma vastidão de pequenos e grande atrativos a serem vistos, padeci. As bolhas se multiplicaram e algumas se tornaram feridas, ao ponto de o ato de caminhar, tão fundamental para mim, parecer inviável. Mas, em vez de desistir, fui em busca dos calçados perfeitos, que não me machucaram.
O primeiro par, de boa marca, robusto, aparentemente confortável, por serem desenhados para a prática desportiva, revelaram-se tão ou mais traiçoeiros do que as botas que eu havia trazido na bagagem, sob a promessa de que seriam ideais para longos percursos e não foram. O martírio de meus pés se estendeu por mais dois dias, enquanto ingenuamente eu insisti que os novos sapatos me trariam paz.
Restou-me, assim, uma última tentativa. Decidido, em uma manhã muito fria, após uma longa procura, encontrei um par de tênis confeccionados em uma malha tecnológica super flexível, moldável ao formato de meus pés tamanho 44, que se sentiram não apenas vestidos, mas abraçados. O alívio foi indescritível, tanto que até retornar para casa, só os tirei quando voltava ao hotel. A eles devo algumas das melhores caminhadas da viagem.
Ao longo deste ano pandêmico, em que saí muito menos de casa, fiz desse par de calçados azuis da cor do céu uma quase segunda pele para meus pés piscianos. Continuo a andar, às vezes sem um destino fixo, mais pela sensação de ampliar um pouco meus horizontes, hoje bastante limitados pelos recortes impostos por minhas janelas. Proteger meus pés tornou-se, também, uma forma de manter meus olhos abertos.