O dia segue seu rumo. Ouvem-se os rugidos dos carros que passam sem parar, em uma orquestra contínua que sobe pelo ar e entra pela janela, a anunciar a cidade, espalhando-se com seus instrumentos invisíveis pela sala. Há uma nota dissonante, mais aguda: uma motocicleta acelera, com pressa. Aonde vai? Não se tem ideia, mas ela prossegue rápida por entre os automóveis, a ziguezaguear em disparada. Uma sinfonia dissonante, em movimento de fuga, embala a tarde.
As grandes metrópoles, que acordam muito cedo, sem nem ao mesmo terem adormecido direito, são teias de sons, que vão desde os gritos solitários do bêbado na madrugada, a culpar o silêncio noturno por seus embates fantasmagóricos, até o rolar de latas pela ação do vento. Do homem, vertem palavras dispersas ininteligíveis, apelos contra a indiferença, que reverberam como acusações. Porém, o que grita aos poucos também se perde noite adentro, deixando apenas um rastro de murmúrios que, de repente, não é mais nada. Ele, o gritalhão, é mais uma vez esquecido. Triste sina.
As grandes metrópoles, que acordam muito cedo, sem nem ao mesmo terem adormecido direito, são teias de sons, que vão desde os gritos solitários do bêbado na madrugada, a culpar o silêncio noturno por seus embates fantasmagóricos, até o rolar de latas pela ação do vento.
Gosto dos latidos. Primeiro um, depois outro, e então eles se multiplicam, como se compartilhassem um código secreto, mensagens que os cães vão passando uns para os outros. Uma conspiração contra nós, humanos, ou seriam uma forma de se irmanarem, lembrarem seus semelhantes de que não estão sós, ao lado de seus donos, em apartamentos, em quintais, refugiados em vários pontos da cidade, que ressona.
Volto ao meio da tarde. Janelões abertos, os veículos na rua abaixo seguem rugindo, com se fossem uma imensa onda marítima de ferro, correias, engrenagens, fumaça, pneus. Máquinas que conduzem homens em suas rotinas, garantindo-lhes destino, rumo, continuidade. O mundo precisa do que segue em frente, e se estende, em fluxo. A noite virá daqui a algumas horas, escorrendo feito tinta pelo céu. Com esse manto virão outros acordes, a embalar a existência que transformará mais uma vez, com latidos, gritos e segredos que a sinfonia da cidade irá verter.