Sou curitibano, mas, com 4 para 5 anos, meus pais e eu nos mudamos para o Rio de Janeiro. Chegamos de carro, pela já super movimentada Avenida Brasil, e, ao avistar o Castelo dos Manguinhos, monumental sede em estilo neomourisco da Fundação Oswaldo Cruz, meu pai, um piadista inveterado, virou-se para o banco de trás e me disse: “É lá que vamos morar”. Fiquei maravilhado com a ideia de me mudar para um palácio que parecia saído de uma história das Mil e Uma Noites, e, por um momento, acreditei.
Viver no Rio de Janeiro, para mim, um garoto recém-chegado do Sul, em plena ditadura militar, foi uma experiência transformadora, definitiva. O ano era 1970, o Brasil estava prestes a ganhar a Copa de 70 e, já nos primeiros dias de aula, aprendi os versos de “Pra Frente, Brasil”, hino ufanista da seleção canarinho que nada mais era do que uma ode ao regime e ao gigante adormecido que prometia acordar a qualquer instante.
No colégio onde cursei os primeiros anos do primário, instalado num casarão antigo à Rua das Laranjeiras, vivi uma das primeiras, e mais definitivas, experiências que me mostraram a fragilidade do mito da democracia racial no qual as tias da escola insistiam em nos fazer acreditar. Em uma cidade com uma população negra gigantesca como o Rio, eu tinha apenas uma colega que não era branca. Seu nome era Tânia.
No colégio onde cursei os primeiros anos do primário, instalado num casarão antigo à Rua das Laranjeiras, vivi uma das primeiras, e mais definitivas, experiências que me mostraram a fragilidade do mito da democracia racial, no qual as tias da escola insistiam em nos fazer acreditar.
Ela tinha um sorriso imenso, de dentes perfeitos e muito brancos, sempre acompanhado de uma gargalhada que se ouvia de longe. Era comunicativa e dona de um humor mordaz, precoce para uma menina de 10, 11 anos, que quando punha os pés para fora do colégio, tirava do bolso do uniforme azul um batom muito vermelho. Deixava de ser criança com uma piscadela e um aceno. Voltava sempre a pé com a irmã, branca e mais velha, que estudava em um outro colégio, mais caro e elitizado, que ficava a algumas quadras da escola onde estudávamos. Lábios também vermelhos.
Não entendia muito bem por que as duas estudavam em escolas diferentes. Sempre as via juntas, às vezes de mãos dadas, e pareciam próximas, mas algo acontecia quando Tânia se despedia da irmã. Ficava parada no portão, a vendo distanciar-se a pé, com uma sombra no olhar que logo se dissipava, e contrastava com sua risada que, aos poucos, era para ela uma espécie de escudo protetor, sempre acompanhado de sobrancelhas arqueadas.
Um dia, quando esperava a condução que me levava de volta para casa, em Copacabana, uma senhora negra, de uniforme preto impecável, e um avental muito branco, engomado, se aproximou do portão e pediu para eu chamar Tânia. Entrei correndo no casarão e a encontrei numa sala dos fundos, conversando com outros colegas de turma. Levantou-se, chamou-me em um canto e pediu, sussurrando: “Diz que que já fui embora, Paulo”.
“Foi agora há pouco com a irmã”. Nunca esquecerei o olhar e o silêncio da senhora ao ouvir minha mentira desajeitada. Saiu sem nada dizer, voltando a cabeça como se procurasse Tânia em algum janelão do velho edifício. Sem se despedir de mim.
Dias mais tarde, fiquei sabendo, ao entreouvir uma conversa da inspetora com uma das professoras, que minha colega não tinha irmãos e sua mãe era empregada doméstica de um casal, cuja única filha estudava a poucas quadras dali, no colégio mais chique do bairro.
No ano seguinte, mudei de escola e nunca mais vi Tânia.