Se alguém daqui a dez, 20 anos, me perguntar qual a lembrança estética que ficou deste período de recolhimento involuntário, cientificamente batizado de distanciamento social, vou provavelmente dizer que, para enfrentar estes dias longos, nem sempre sombrios, e por vezes até iluminados, porém certamente incertos, encontrei alento, companhia e inspiração na música brasileira.
Embora nunca tenha deixado de ouvi-la, de apreciá-la, estes hoje mais de dois meses de isolamento têm sido marcados por uma espécie de recaída amorosa por nossas sonoridades tão múltiplas quanto surpreendentes, que de certa forma me serviram de boia salva-vidas existencial em um momento de certa desilusão com o estado de coisas no país. Agarrei-me a ela para não desistir do Brasil.
O início dessa reaproximação se deu antes da pandemia se instalar por aqui. No início do ano, comprei um toca-discos e voltei a ouvir LPs de vinil, que passei a adquirir com certa parcimônia, garimpados sem pressa nas boas lojas de discos usados de Curitiba. Como tenho um gosto eclético, moldado ao longo de décadas até o limite da esquizofrenia, é quase impossível dizer, com alguma precisão, do que mais gosto. Depende do dia, da hora e do estado de espírito. “Sem música, a vida seria um erro”, disse um dia o filósofo alemão Friedrich Nietzsche. Concordo sem hesitar.
Se alguém daqui a dez, 20 anos, me perguntar qual a lembrança estética que ficou deste período de recolhimento involuntário, cientificamente batizado de distanciamento social, vou provavelmente dizer que, para enfrentar estes dias longos, nem sempre sombrios, e por vezes até iluminados, porém incertos, encontrei alento, companhia e inspiração na música brasileira.
Assim, escolher o que comprar, ou ouvir, por mais que também seja um prazer, não deixa de representar um dilema às vezes. Isso ficou muito claro para mim quando, em uma manhã de sábado, resolvi tomar coragem para vasculhar, em um baú fechado – e absolutamente tomado por ácaros, traças e poeira -, o que que restou do que um dia foi minha discoteca de juventude.
Lá encontrei LPs de trilhas sonoras, que até hoje coleciono, muitas delas hoje raras, como as dos filmes Betty Blue, Veludo Azul, Paris Texas e O Selvagem da Motocicleta. Também estavam, soterrados pelo tempo, John Lennon, Madonna, Talking Heads, Carpenters, Pet Shop Boys, Smiths, Jacques Brel, Donna Summer e Barbra Streisand. Ecletismo em altíssimas doses.
Entre esses tesouros desenterrados, no entanto, um deles fez meu coração bater mais forte: Meus Caros Amigos, de Chico Buarque, primeiro LP que comprei na vida com meu próprio dinheiro. Em 1976, aos 10 anos. “O Que Será? (à Flor da Terra)”, “Olhos nos Olhos”, “Mulheres de Atenas”, “Passaredo”, “Basta um Dia”, “Meu Caro Amigo”. Todas essas canções estão ali, em um mesmo disco, que agora escuto ao escrever esta crônica, com toda a exuberância sonora do vinil, a despeito de riscos e chiados. Não é exagero dizer que este álbum mudou minha forma de ouvir música brasileira, me apontou caminhos para entender de onde e quem eu era.
Dessa expedição à casa materna voltei com duas sacolas carregadas com 60, 70 discos de vinil, vários deles de música brasileira. Além de muitos de Chico (uma paixão à primeira vista), Elis, Bethânia, Gal, Caetano, Milton, João Gilberto, 14 Bis, Francis Hime, mas também artistas da minha “geração”: Cazuza, Titãs, Legião Urbana.
Isso aconteceu em início de março. Daí veio a quarentena e tudo, de repente, mudou de compasso. Os dias se sucederam, não sem compromissos e obrigações, ou mesmo alguns percalços, mas sempre em um único espaço físico: a casa, o lar, com todos os seus traços de intensa pessoalidade, que vão se misturando à nossa vida pública, de uma hora para outra trancada em um apartamento.
Foi quando a música brasileira, do passado e do presente, emergiu, como uma “onda que se ergueu no mar”. verso que roubo de “Wave”, clássico de Tom Jobim.
O que há por trás dessa urgência de ouvir de Gil a Céu, passando por Rita, Ná, Mônica Salmaso, Lenine, Elba, Zeca Baleiro, Zé Ramalho, Letrux, Marina Lima, Zezé Motta, Caetano, Fafá, Simone, Gal, Bethânia, Arrigo, Zizi, Clara, Tereza Cristina, Marisa, Maysa, Nara, Los Hermanos, Caymmi, Tom, João Gilberto, Elis, Maria Rita, Felipe Catto, Pabllo Vittar, Adriana Calcanhotto, Francis, Ivan Lins, Luiz Melodia, João Bosco, Aldir Blanc? Saudade, e vontade, de um Brasil, mas não este. Juntei a fome de identidade com a vontade de sobreviver para ir buscá-lo.