Meus pais decidiram que seria uma boa ideia se eu cursasse a sétima série na cidade da minha mãe. Não deu certo e pedi penico lá pela quarta ou quinta semana, se muito. Como o calendário letivo já estava fechado para a minha antiga escola, fui matriculado em uma escola particular no bairro pobre da região. Minha sala estava dividida entre os meninos da minha praia, os meninos da praia vizinha (e rival), os meninos da cidade de Paraty e os meninos do bairro pobre. Para muitos – como a escola era nova na região – foi a primeira experiência de convivência com o diferente, o não-familiar, o conhecido-desconhecido. Para nós, tão acostumados a conviver entre nós mesmos, sem diferenças maiores, essa simples proximidade dava origem a todo tipo de conflito físico, e numa frequência alarmante. Semanalmente tinha porrada no recreio, a grande maioria delas por razões desconhecidas. Alguém que olhou torto, uma brincadeira que não foi levada na brincadeira, uma palavra atravessada, era o bastante para encenarmos nossa versão juvenil e escolar de Colors.
O mais interessante era que as pessoas da mesma região nunca brigavam entre si. Não que não houvesse ofensas entre elas, mas existia entre nós, mesmo de maneira inconsciente, um respeito tácito pela territorialidade. Uma tolerância que não nos custava, mas que mesmo assim não reservávamos aos outros. Ainda hoje parece difícil entender por meios racionais essa necessidade de defender bandeiras que não necessariamente significavam alguma coisa para nós, mas não há como negar a sinergia do momento, em que absolutamente tudo fazia sentido. Não aceitar bosta dos outros, dos de fora, dos haoles, dos idiotas, era importante para provar nosso valor. Era nossa crença pessoal. Uma fé sem bíblia e sem deus.
Para nós, tão acostumados a conviver entre nós mesmos, sem diferenças maiores, essa simples proximidade dava origem a todo tipo de conflito físico, e numa frequência alarmante.
Estranho também era ver que não tínhamos o dom perene do antagonismo. Em diversas ocasiões – na maioria delas, eu gosto de pensar assim pelo menos – éramos amigos, colegas de sala, que jogávamos bola e atirávamos pedra no terreno baldio juntos sem sentir a tensão de uma trégua com hora para acabar. Se alguém tirasse o áudio e o drama de nosso ano letivo, a coisa seria muito parecida com cães que moram juntos, que alternam entre a total indiferença, algumas brincadeiras e rusgas constantes motivadas por nada. A propensão à paz era a mesma, ou quase a mesma propensão à guerra, e as brigas foram diminuindo conforme o último bimestre caminhava para seu fim. Antes do ano acabar, tivemos uma feira para apresentar projeto e trabalhos finais, e tenho a lembrança do clima amistoso e completamente apaziguado.
No ano seguinte, pouca gente restou naquela escola. Tivéssemos ficado mais por lá, talvez aprendêssemos mais sobre essa convivência difícil e valiosa. A sétima série me ensinou sobre os povos da mesopotâmia, tipos de reprodução assexuadas, mapas de relevo e vegetação do Brasil. Mas levei pouca coisa além desses tempos turbulentos que passamos para aprender a desenvolver com outros a empatia que temos pelos nossos.