Eu não queria escrever uma crônica hoje. Hoje. Ao longo da semana, consigo lembrar de pelo menos três momentos em que tive vontade de escrever uma crônica, mas não escrevi. Deixei o prazo apertar para agora. Justo agora, que o sol brilha lá fora, a tarde se despede junto com o fim de semana e talvez o último dia de agito do pré-carnaval da cidade urja para que eu me junte à multidão. Justo eu, que nunca gostei de carnaval, quanto mais de pré-carnaval. Toparia uma tarde debaixo do sol, marinando no suor, em troca desse exercício textual que me catequisa toda semana.
O vinho que estou bebendo é bom. Tinto fino, adocicado pela barrica de primeiro uso. Está pela metade da garrafa. Trocaria ele por um riesling de vinte reais estupidamente gelado para beber no bico entre os paralelepípedos do Largo da Ordem, de camisa florida e óculos escuros. Anônimo na multidão, apagado pela falta de energia e felicidade dos que explodem pelas ruas em gritos catárticos de glitter e paetês. O cheiro de cerveja que detesto, a música que detesto e o calor que detesto estão mais convidativos do que esta crônica nesse exato momento. Que quero eu com essa folia que canta lá fora, afinal? Escapar às obrigações, mascarar o avanço galopante da decrepitude física, ignorar a introspecção que sempre foi a tônica da minha vida? Por que, afinal, justo hoje, quero viver? Por que, justo hoje, considero a vida festiva mais vida do que a que se desdobra em dramas internos entre minhas quatro paredes?
Por que, afinal, justo hoje, quero viver? Por que, justo hoje, considero a vida festiva mais vida do que a que se desdobra em dramas internos entre minhas quatro paredes?
Talvez seja a falta de ventilador dentro de casa, e as janelas abertas que pouco fazem para me refrescar, ou o vinho que esquenta e me faz querer noites mais frias para poder apreciá-lo melhor. Um súbito espasmo de uma autoestima moribunda que me faz querer ver e ser visto, ou o cansaço dos mesmos poucos metros quadrados em que passo a maior parte do meu tempo livre. Hoje queria sair, queria pegar sol, beber na rua, ser meio normal. Mas lembrei que tinha essa crônica para escrever. E enquanto isso, ademais, a roupa seca no varal comunitário lá de cima. De maneira que é mais um domingo perdido, que fica na vontade. De uma próxima, poderia me programar melhor. Mas quem disse que me programo para fazer uma coisa dessas? A vida lá fora chama de supetão e despreza planejamentos. Ou é planejada ou é vida. As duas coisas nunca, jamais. Quem sabe ano que vem.