Moro em uma cidade onde qualquer manifestação pública da vida interior é vista, no mínimo, com ressalvas. Embora seja difícil precisar onde está o problema, a coisa toda deve ter suas razões. Explicações podem ser cavoucadas na base etnográfica da composição do povo, no kantianismo fajuto que a ideia de civilização evoca – e civilidade é algo levado a sério por aqui, ao menos na teoria –, ou simplesmente na falta de paciência com qualquer ruído vindo de fora do espaço pessoal tacitamente respeitado pelos habitantes dessa cidade peculiar.
Mas por mais que o desejo de ser mais compreensivo brote no coração do citadino insatisfeito com a frieza – moral – de seus conterrâneos, ninguém está preparado para a turma bêbada que sai cantando pelas ruas na madrugada. Agora mesmo, enquanto escrevo esse texto, uns quantos mamados estão tentando entoar sem sucesso algumas melodias típicas de estádio de futebol, e poderia apostar dinheiro que, às três da manhã (hora atual), não existe qualquer pessoa ciente do barulho disposta a relevar a efusiva felicidade alheia. Ninguém dirá nada a respeito. Teme-se que qualquer grito de “vai dormir, vagabundo”, esgoelado por uma fresta de janela apenas some e termine por combater o problema com o mesmo problema. Deixarão a turma animada sair impunemente com suas músicas desafinadas na esperança de que o momento seja o mais passageiro possível. Qualquer risco de prolonga-lo é tomado como contraproducente.
“Agora mesmo, enquanto escrevo esse texto, uns quantos mamados estão tentando entoar sem sucesso algumas melodias típicas de estádio de futebol, e poderia apostar dinheiro que, às três da manhã (hora atual), não existe qualquer pessoa ciente do barulho disposta a relevar a efusiva felicidade alheia.”
A turma que está bêbada lá embaixo atrapalhando o sono de todo mundo por certo já teve seu sono atrapalhado por outra turma bêbada com as mesmas inclinações artísticas. E nenhuma empatia brotou desse confronto de experiências. Talvez seja o álcool que derruba as barreiras do bom senso, talvez seja a conformidade de entender a vida como esse carrossel caótico de perturbados e perturbadores da ordem que se alternam em seus papéis, mas a verdade é que poucos deixaram-se ser ensinados. Talvez esse incômodo não devesse ser tomado como pessoal, mas apenas subproduto de uma legítima e cada vez mais rara demonstração de euforia. É claro, o ideal seria cada um no seu quadrado, para sempre vivendo sem esbarrar na existência dos outros, a menos que seja convidado. Mas como ficam aquelas horas da noite em que surge uma necessidade fisiológica de se mostrar vivo? Como não cantar na madrugada úmida o pertencimento a essas ruas desertas e a esse sereno maldito? Como negligenciar o desejo urgente de ser?
No discurso é bonito. Eu queria mesmo era dormir. Cambada de vagabundo.