Lembro que estava em uma aula de qualquer coisa sem importância na minha vida – que é qualquer aula que se tenha em sala quando se é criança, afinal de contas. Deu uns 15 minutos na professora por alguma razão que acredito não ser nossa costumeira intransigência estudantil, e ela deixou de lecionar sua matéria inútil para adotar para si o papel de educadora, no qual provavelmente acreditava quando ingressou por essa vereda agridoce do ensino fundamental.
Primeiro disse que éramos alienados da “realidade que está lá fora”, apontando para os limites da nossa pequena e alienada praia. Nada de novo aí. Não se espera que ninguém com nove anos que more no meio do mato só funcione de manhã com um copo de café preto e um jornal de circulação nacional na mão, e saia da escola para jogar bola e discutir os rumos do keynesianismo nessa república de bananas com seus amiguinhos impúberes. Nem por isso deixamos de ouvir aquilo com a gravidade que a ocasião pedia. Não estávamos acostumados a que nos dirigissem a palavra como se fôssemos adultos.
A professora logo explicou o que quis dizer com seu rompante. Disse-nos que éramos alienados não porque éramos crianças, mas porque éramos a elite do Brasil. Já conhecia essa palavra, e lembro-me bem de, logo que a ouvi, olhar para os lados para avaliar como era, enfim, a elite do mundo da matéria.
Estávamos ali, a elite do Brasil, afinal. Claro, nossos pais eram, quase em sua totalidade, funcionários públicos de carreira. Engenheiros, físicos nucleares, biólogos, cientistas em geral, criando como podiam seus filhos naquele isolacionismo mandatório que a profissão exigia.
Se éramos todos brancos? Sim, com exceção de um, a quem todos chamavam de Pelezinho, porque ele jogava bola muito melhor do que todos nós e porque era mais fácil do que Bruno Guilherme. Mas se a contagem fosse feita aqui no sul do país, talvez esse número subisse de um para sete ou oito, entre vinte. Se crescemos machistas, homofóbicos e à direita da política? Mas é claro. O que você esperava?
“Disse-nos que éramos alienados não porque éramos crianças, mas porque éramos a elite do Brasil.”
A tomada de consciência não foi um processo que fez parte do nosso desenvolvimento – tanto é que alguns continuam na mesma até hoje. Mas entender-me elite de alguma coisa, algo que sempre vai estar aberto a debates para mim, é um entendimento para sempre difuso e inconclusivo. De que me vale ser elite, afinal de contas?
O patrimônio que eu tenho serve somente a mim, como não poderia deixar de ser, mas as poucas ideias que posso oferecer para meus semelhantes colegas sociais em termos de equidade nunca serão aceitas por confrontar um sistema de castas meritocráticas, no qual se crê com uma devoção quase religiosa.
Da mesma maneira, há o tal “lugar da fala”, que não me permite falar em nome quem quer que seja diferente da minha condição sem que seja questionado sobre quem sou eu para falar em nome de uma pessoa pobre, por exemplo. Preso em um limbo de classes e lancinado vez ou outra por uma culpinha inofensiva, me restam poucas opções além de uma crônica como essa.
Talvez a elite nunca entenda o Brasil. Talvez o Brasil nunca entenda a elite. Ou talvez seja só eu. Vai saber.