Em uma dessas assimilações parciais de conhecimento, li em algum lugar que em alguma tribo de não sei onde as crianças são criadas por todo mundo, no melhor espírito de comunidade. De modo que se uma criança cai no chão, ela não vai chamar pelo pai ou pela mãe, porque sabe que algum adulto vai vir a seu socorro.
Fiquei com esse fragmento de informação na cabeça porque me soou muito familiar. O cantinho isolado do mundo onde eu fui criado tinha um espírito semelhante, e embora deva a minha formação pessoal a meu pai e a minha mãe, não posso negar o peso que os pais dos meus amigos tiveram na minha vida.
Aliás, basicamente, todo mundo foi criado pelo pai de todo mundo ali, razão pela qual, talvez, são chamados até hoje de “tios” — uma coisa bem feia para a idade em que estamos atualmente, mas perdoável diante do carinho que temos por nossos parentes postiços. Muito além da relação próxima que outras pessoas desenvolveriam com os pais de um ou dois amigos – aqueles que lhe dariam carona para as aulas de inglês ou preparariam um lanche quando você fosse fazer uma festa do pijama, por exemplo –, meus muitos tios me ajudaram com as lições de casa, me pagaram doces e lanches na rua, me deram presentes de Natal até depois de velho, me fizeram bolos, pães e churrascos e, por fim, se tornaram meus amigos também, quando tive a idade para equalizar a relação.
Isso não era privilégio meu. Meus pais também cuidaram dos meus amigos, e meu pai inclusive ajudou o Tsunami (o apelido do pessoal ali é um capítulo a parte), no seu trabalho de conclusão de curso em Biologia. Meu avô ensinou alguns a pintar, meu tio ensinou outros a surfar, minha avó ajudava na lição de casa em uma grande mesa instalada na garagem. Cada um ajudava como podia, e sei que na cabeça de cada uma dessas pessoas a coisa é tão bonita quanto na minha.
“Cada um ajudava como podia, e sei que na cabeça de cada uma dessas pessoas a coisa é tão bonita quanto na minha.”
A coisa não durou muito tempo dessa forma. Depois que nossas casas começaram a receber telefone, TV a cabo e internet, ali por volta de onze ou doze anos depois do meu nascimento, os adultos deixaram de sair à rua e a vila foi se tornando desértica. Aos poucos, a interação social foi reduzida a pequenas confraternizações esporádicas, de modo que os novos pais que surgiram depois da nossa época não se tornaram nossos tios. Ainda nos reunimos sempre no ano-novo e abraçamos os pais de nossos amigos e desejamos a eles o que desejamos a nossos parentes. E pra mim, a ceia acontece em pelo menos três casas. Sem convite.