Está tudo lá, caricaturalmente: os passos vagarosos e curtos, a boina que protege a sensível pele da cabeça malhada de manchas, o bolso da camisa entulhado de papéis e anotações importantes cuja organização só ele entende. Os óculos, as mãos ossudas e trêmulas, a boca mole que pede ajuda. É mais um. Obrigado a lidar com a rotina quando o que lhe prometeram foi descanso e sossego. Se atrapalha com as cobranças, não sabe usar um caixa eletrônico – a posição do cartão, do código de barras e a senha que sempre esquece. Está frágil e sozinho no mundo, vivendo seus últimos dias com dificuldade. Uma dificuldade quem sabe desafiadora, quem sabe estafante. Refém do fluxo das horas e do fazer moral, obedece. Ou tenta.
Disse ter um filho. Paga as contas para o filho sob o risco de não poder ver mais seus netos. Ele tira meus netinhos de mim se eu não pagar, diz. Sabe-se lá o que levou a tal situação. Crie seus filhos e poderá mimar seus netos, mime seus filhos e terá que criar seus netos, dizem. Talvez tenha sido um mau pai, para que as coisas chegassem a essa situação. Talvez a cria tenha saído torta à sua revelia. Restou-lhe um pouco dinheiro, que não gasta com outra coisa senão com essa chantagem emocional da família que lhe resta. Seus amigos foram morrendo, um a um, assim como seus amores, seus cães e suas vontades. Resta o montante em conta, os boletos que maneja mal, os netos que só consegue ver mediante pagamento e o pequeno patrimônio que não lhe permite morrer indigente. Talvez goste das obrigações, talvez viva pelo senso de normalidade, o dever que afasta o memento mori da frente dos olhos. Sabe que agora é a qualquer momento. Seu patrimônio vai dividir ainda mais a família, que nunca foi particularmente unida, e precisa se preparar. Tanta coisa para deixar pronta porque não há quem possa fazer por ele. Pode postergar para amanhã, depois para o próximo mês, mas nunca para o ano que vem. Ano que vem já não é um tempo mensurável. O futuro é uma névoa densa. Só enxerga a paisagem conforme se adentra. Nunca o horizonte, nunca as bifurcações. Qualquer cinco passos pode resultar em precipício.
Disse ter um filho. Paga as contas para o filho sob o risco de não poder ver mais seus netos. Ele tira meus netinhos de mim se eu não pagar, diz. Sabe-se lá o que levou a tal situação. Crie seus filhos e poderá mimar seus netos, mime seus filhos e terá que criar seus netos, dizem.
Pede ajuda para pagar os boletos. Tem as senhas anotadas num papel. Se for roubado junto com o papel, alguém poderá usar a senha com o cartão e fazer a limpa antes que tenha tempo de ir, com seus passos vagarosos e curtos, até a polícia. O banco não ressarce transações feitas com cartão e senha, presume que a senha é pessoal e intransferível e não comporta em seu mundo de possibilidades os velhos que já não são capazes de decorar uma sequência de seis números, ou uma aleatoriedade alfanumérica qualquer. Isso sem falar nos buracos na calçada, nos golpes a que pode se entregar guiado pela fé nas boas intenções, nos carros que aceleram para acima dos limites permitidos, do sol que lhe machuca a pele, do corpo que se decompõe em vida, o mundo inteiro que avança numa velocidade que já não é mais a sua velocidade. Corre riscos, mas quem é que não corre? Mantém a constância para manter a sanidade. Talvez gostaria de deitar e dormir, mas nem por isso tem pressa. Sozinho e dependente de estranhos, vive o que é possível viver. Até onde for possível viver.