Almoço com frequência em um bistrô amplamente frequentado por pesquisadores, professores, esse povo que se importa muito com blazer e óculos redondo e pouco com penteado, vocês sabem. O restaurante é um reduto relativamente luxuoso para as cercanias da reitoria da Universidade Federal do Paraná, de modo que não é raro encontrar sentado numa única mesa a nata da ciência política da cidade ou um grande grupo de linguistas alemães enfiando batatas na boca. Indivíduos, portanto. A minoria distinta das massas, como na visão radicalmente aristocrática de Ortega y Gasset. Eu, que não sou indivíduo, mas massa, também almoço lá, e figuro entre essas pessoas como uma rêmora.
A mágica acontece na hora de pagar a conta, e a artista da ilusão é uma mocinha de olhos amendoados que cuida do caixa. Em transe pelo trabalho repetitivo de apanhar as comandas, dizer a soma da conta e colocar o CPF na nota, quase que mediunicamente associa rostos a números de CPF, e decora, nem que seja metade do cadastro de pessoa física, de modo que ao cliente pagador só resta completar os números faltantes. Eu, por exemplo, aos olhos dela, tenho cara de 100 648. Como o homem das ruínas circulares de Borges, logo vou ter a cara do meu CPF inteiro, mas por enquanto, a névoa de meus traços indefinidos só lhe permite desvendar mnemonicamente os seis primeiros dígitos, recitados de três em três. Nada em meus olhos, queixo, barba ou brincos faz com que ela lembre de um sete, ou de um trinta e seis. Esses números não existem em mim ainda. Não lhe pareço simpático, ou antipático. Nem bonito, nem feio, nem cansado. Nada do que possa ser concluído pela análise fisionômica é visto por ela. O que ela vê são números de CPF, que deve colocar na nota fiscal do almoço.
Não lhe pareço simpático, ou antipático. Nem bonito, nem feio, nem cansado. Nada do que possa ser concluído pela análise fisionômica é visto por ela. O que ela vê são números de CPF, que deve colocar na nota fiscal do almoço.
Eis aí a beleza de sua mágica: somos todos – e incluo aqui os doutos acadêmicos que lá almoçam – destituídos de toda nossa pretensa humanidade para sermos perfilados de acordo com o número que nos acompanhará pelo resto da vida. Eu perco rosto e sonhos, perco a saciedade da comida ingerida e as qualidades que me fazem um bom ou mau amigo. Mas eles perdem mais. Perdem doutorados, congressos realizados, artigos publicados, quilômetros de lattes pelo ralo da indiferença diante da importância de saber o número do CPF. À moça de olhos amendoados não interessa sequer nome e sobrenome, commodities tão apreciadas nessa cidade que não larga o ranço provinciano da família. Somos replicantes de K. Dick, tijolos no muro de Roger Waters. É tudo o que nos resta naquela fila. Dispensamos a segunda via do cartão e saímos porta a fora, desnorteados. A claridade do dia ofusca por um momento, um breve momento em que voltamos a ter rosto e sonhos, projetos realizados e a realizar. Continuamos indiferentes aos passantes da calçada, mas nos reconhecemos entre nós. Somos gente, somos massa. Se temos lattes, pouco importa. Antes de tudo, almoçamos aqui.