Existiu, nos primórdios da internet discada, um longo texto que circulou em correntes de e-mail e pequenos sites caseiros chamado Sincronicidade Artificial, Manipulação de Linguagem, Kundalini e as Fronteiras da Realidade. Se o título tresloucado já não colocasse o possível leitor em estado de alerta, o conteúdo não deixaria dúvidas sobre o tom conspiratório do autor, auto-batizado a partir de algum personagem do filme Matrix. Tentava tratar de alguma espécie de cooptação da mente por parte de alienígenas ou seres não-humanos por meio da linguagem, fazendo com que o ouvinte, ao entreouvir um diálogo, sentisse algo como se impelido para dentro do discurso “deles”. Por exemplo: você passa pela rua e ouve alguém se queixando que a mulher precisa ver o médico por causa da coluna dela. De maneira muito natural e quase instintiva, o ouvinte casual começa a pensar em sua própria coluna, em seus problemas de saúde. Dessa maneira, assimila-se a mente dominada, fazendo com que esta, por sua vez, replicasse outros discursos-armadilha para capturar novas almas.
Talvez dar uma réstia que seja de credibilidade a alguma coisa desse texto já seja alegação suficiente para a intervenção, mas, de toda essa maluquice, fico com a verdade do pensamento que vagueia por outras situações para achar dispositivos-desculpas para se autocentrar.
Talvez dar uma réstia que seja de credibilidade a alguma coisa desse texto já seja alegação suficiente para a intervenção, mas, de toda essa maluquice, fico com a verdade do pensamento que vagueia por outras situações para achar dispositivos-desculpas para se autocentrar. Percebi isso enquanto lia uma notícia de que uma família de brasileiros morreu no Chile ao respirar gás vazado no apartamento durante a noite, e me dava conta de que também sou brasileiro e estou alugando um apartamento no Chile para passar uns dias.
No anúncio do apartamento em questão, um aviso: não dispõe de detector de gás, é necessário que o usuário traga o seu próprio. Achei graça na hora, a paranoia de quem chega para as férias com mala, cuia e um detector de vazamento de gás, o susto com o mundo, o olhar ressabiado para todo canto do recinto estranho. De um momento para o outro, a paranoia voou da imagem hipotética para dentro de mim. Sou eu agora o assustado com problemas que eu não sabia serem pertinentes antes da tragédia alheia, que pesquisa no site das Lojas Americanas o preço do tal detector, capturado pela sincronicidade artificial, apavorado com a possibilidade de morrer dormindo – imagine, o sonho de qualquer covarde, quem recusaria uma coisa dessas!? Chacoalho a cabeça, tudo isso é uma grande besteira, digo para mim mesmo, sabendo que há tragédias que espreitam em qualquer esquina. Diante da vastidão do espaço, da inexorabilidade do tempo e de tudo o que há aí fora disposto a ceifar almas, o que são esses chilenos e seus problemas gasosos?
O mal estar persiste durante o dia. Sinto algo enquanto encho a garrafinha de água no bebedouro do trabalho. É isso o tal do angst do Kierkegaard, pergunto, sem entender lhufas de Kierkegaard, apenas para manter acesa a esperança de que esse receio ridículo e real já tenha passado por uma cabeça mais brilhante do que a minha. Bebo a água. A água cura tudo, todos os males da mente e do corpo, dizia outra ideia corrente em textos na época da internet discada. Sinto-me estranhamente melhor.
Talvez tenha sido uma ideia passageira, um medo que a mente não conseguiu sustentar, como o próprio medo da morte é impossível de ser sustentado por longos períodos em uma cabeça sã. Digo isso para mim mesmo, porque não quero dizer que talvez tenha sido a água. Que besteira, a água! Desde quando água tira o medo da morte? Foi o sangue que ficou menos grosso no cérebro, permitindo uma circulação mais ligeira de nutrientes necessários às boas sinapses, interpreto com minha biologia de ensino médio. Volto. Descanso. Procuro o que mais fazer no Chile além de morrer inalando gás. De uma picaretagem a outra, a vida vai se compondo com o que há de verdade nas mentiras.