Os artistas de rua ocupam o espaço da Avenida Paulista aos domingos desde 2016, quando o local – que é um dos cartões postais de São Paulo – foi inserido no Programa Ruas Abertas, que visa uma maior ocupação da cidade pelas pessoas. Esse espaço aberto, no entanto, tem sido tolhido nos últimos anos por conta de um aumento da burocratização e até de perseguição aos artistas por parte da Prefeitura.
Conversamos com o advogado Guilherme Varella, que é professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), para entender como os casos denunciados por músicos que tocam na Paulista podem se relacionar com uma política mais ampla, que visa diminuir a ocupação da cidade e mesmo uma privatização dos espaços. Varella – que é autor do livro Direito à folia – O direito ao Carnaval e a política pública do Carnaval de rua na cidade de São Paulo (editora Alameda) – acredita que as últimas gestões públicas têm mantido uma postura de cercear o direito às ruas e às artes.
Escotilha » Há algumas semanas, alguns artistas manifestaram terem sido impedidos de se apresentar aos domingos na Paulista. A Prefeitura afirma que se trata mais de uma organização para preservação a ordem pública, e que os artistas que usam caixa de som precisam agora se cadastrar. Como você vê enxerga este movimento da Prefeitura?
Guilherme Varella » A primeira questão a ser colocada é que não se trata de um imperativo administrativo. Ou seja, não se trata de uma ação para organizar o espaço público, de reduzir danos em relação à desordem ou qualquer questão do gênero.
Isso é um pretexto. Durante todos os anos em que foi regulamentado o exercício dos artistas de rua na cidade de São Paulo, sobretudo no projeto Ruas Abertas da Prefeitura, uma série de critérios e procedimentos para conversar a harmonia nos espaços públicos foi colocada por decreto – decreto esse que regulou de alguma maneira este exercício e se mostrou muito eficaz para que os artistas pudessem ter a liberdade de expressar as suas linguagens, como também pudessem conciliar essa expressão com outras atividades que acontecem nas ruas, como as feiras livres, as pessoas andando de bicicleta, o comércio, etc.
Não há nada real e concreto que exija uma ação da Prefeitura tão drástica para retirar os músicos das ruas, sobretudo da Avenida Paulista, que é um espaço que comporta com tranquilidade todos eles. O que está acontecendo de verdade é uma orientação política da Prefeitura de cerceamento de tudo o que é manifestação pública das artes.
Isso não é um caso isolado, e está acontecendo em outras esferas, como as festas de rua dos coletivos, o Carnaval de rua, que está sendo cada vez mais burocratizado e domesticado, e agora com os artistas de rua, que passam a ser perseguidos e retirados de seus locais de trabalho.
Esses artistas são trabalhadores que estão ali tocando as músicas de seus grupos, recebendo pelo público, e eles não interferem negativamente em nenhuma dinâmica urbana a ponto de justificar uma intervenção como essa da Prefeitura. Não há outra explicação além de uma postura política que já vinha desde a outra gestão do prefeito Ricardo Nunes.
O que está acontecendo agora é uma tentativa para que São Paulo tenha cada vez menos espaços para as artes de rua. Culturalmente falando, isso é ruim pois vai reiterando a ideia de São Paulo como uma cidade sisuda, truncada, que não gosta de ter um lazer mais democrático.
Em que sentido essa fiscalização dos músicos que tocam na Paulista reflete no direito das pessoas de ocupar livremente as ruas?
São Paulo é conhecida internacionalmente como uma cidade que recebe muito bem os artistas que trabalham na rua, e que tem muitas oportunidades para eles. É por isso que vemos nas ruas artistas vindos de vários países da América Latina e outros lugares do mundo. Isso porque os semáforos, as ruas abertas da cidade têm muito público; mas também porque esse ordenamento da cidade trouxe segurança a eles, uma previsibilidade para que eles não fossem acossados ou pegos de surpresa com a apreensão dos seus instrumentos musicais, o que seria muito injusto.
O que está acontecendo agora é uma tentativa para que São Paulo tenha cada vez menos espaços para as artes de rua. É uma pena, porque isso vai tirando da cidade o atributo de ser acolhedora. Turisticamente, isso é muito ruim para a cidade. Culturalmente falando, isso é também ruim pois vai reiterando a ideia de São Paulo como uma cidade sisuda, truncada, que não gosta de ter um lazer mais democrático.
E, por fim, é ruim do ponto de vista econômico, pois de alguma forma isso faz circular a economia da cultura e é uma forma de remuneração dos artistas, considerando que esse é um ofício muito precarizado e difícil de ser assimilado pelo mercado tradicional.
Se realmente a Prefeitura diminuir a quantidade de músicos nas ruas, qual deve ser o efeito na população de SP, principalmente para as pessoas com menos acesso a opções culturais?
Essa fiscalização da Prefeitura é um impedimento ao direito das pessoas de ocuparem a cidade, que é previsto na Constituição Federal. Ela não visa preservar o direito das pessoas, mas sim o contrário: ao retirar espaços de lazer e segurança para os artistas, diminui os espetáculos que estão na rua, e o próprio estímulo para que a população vá às ruas para confraternizar. Esse tipo de fiscalização não agrega nem para o comércio, nem para o público, nem para os artistas.
Em 2015, a implantação do Programa Ruas Abertas começou a colocar em prática várias ações para a ocupação dos espaços públicos em SP, com vias abertas para pedestres e ciclistas. Quase dez anos depois, como você analisa a evolução deste programa?
A partir de 2013, com a gestão de Fernando Haddad na Prefeitura, uma série de medidas foi tomada para que São Paulo se tornasse um espaço de expressão aberto e democrático. Foi assim com o Carnaval de rua, com o programa Ruas Abertas, das praças conectadas com Wi-Fi, e assim por diante.
Em 2014, a regulamentação das atividades dos artistas nas ruas fez que a cidade se tornasse um ambiente muito seguro para eles, fortalecendo esse tipo de expressão, o que é uma tendência no mundo todo.
Hoje, dez anos depois, o que a gente vê é um retrocesso muito grande pela perda dessa dimensão pública. A Prefeitura assumiu uma postura de cerceamento dos artistas e dos espaços, fazendo com que eles migrassem para locais privados. Isso com certeza é um decréscimo no direito da população de São Paulo às artes e à cultura na rua.
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