Foi Albert Camus – cuja morte completou 60 anos no começo deste mês – quem disse que “se há um problema filosófico realmente sério” só pode ser o suicídio, talvez um tabu que apenas não é maior que o aborto. E é a partir do fim – de um jovem que se joga do 11º andar de um prédio – que Javier A. Contreras dá início a Crocodilo, uma espécie de romance-ensaio sobre finitude e memória, sobre ausência e presença.
Por meio dos olhos de Ruy – um jornalista septuagenário que tenta encontrar uma razão concreta para entender o que poderia ter levado seu filho Pedro, às raias dos 30 anos, a dar cabo da própria vida – é possível enxergar o luto, a dor e, acima de tudo, a indignação de um silêncio forçado. Enquanto o pai também está em queda livre, incapaz de lidar com os fatos, Marta, sua esposa e mãe de Pedro, se mantém ligeiramente forte, quase estável.
Entre memórias – que dão o caminho para descobrirmos um casamento em perpétua crise – e uma realidade espinhosa, Ruy está perdido no vazio, largado em uma casa de espelhos que refletem somente os seus pecados e as suas falhas, abrindo espaço para uma dor ainda maior.
Ao internalizar a dor, Crocodilo ganha potência e delicadeza, em um jogo narrativo bastante engajado e inteligente.
Com uma lógica assombrosa, que revela como ninguém está preparado para a perda, Ruy passa a se perguntar: agora que já não tem mais filho, ainda é pai? Até mesmo a língua – uma estrutura social, antes de tudo, pondera o autor – não está preparada para receber a morte de um filho. Se quem perde o pai é órfão, questiona Ruy, por que pai que perde o filho não está contemplado no dicionário? Rigorosamente, e de forma cirúrgica, passa ser como um indigente, alguém excluído do seu direito ao pesar.
Em suspenso
Se por um lado Crocodilo é um dedo na ferida, por outro é costurado com sensibilidade e beleza, com um lirismo que percorre cada um dos sete dias que dão corpo ao livro. Ao mesmo tempo, Contreras pontua um diálogo com seu romance anterior, Soy loco por ti, América – ao incluir o obtuarista Diego Garcia –, e com O mundo dos crocodilos, curta de Wim Wenders cujo centro narrativo explora a relação e o fascínio de uma criança o réptil no zoológico.
Contreras investiga a morte como um evento social, e não situação circunscrita a um núcleo familiar reduzido. Quem sabe, por essa razão, Adrian Borland (1957 – 1999), vocalista da obscura banda The Sound, se jogou nos trilhos do metrô de Londres, no pico de maior movimento. A sua morte, acreditava, precisava parar a cidade, deveria ser algo que atingisse a todos.
Nesse sentido, ao colocar na mesa esse olhar amplo e verdadeiro, Javier A. Contreras se desvencilha da tradição de manter distância, de olhar de fora. Ao internalizar a dor, Crocodilo ganha potência e delicadeza, em um jogo narrativo bastante engajado e inteligente.
“Pedro morreu no pior horário possível. No limite do final da tarde e do início da noite. Hora do rush. Hora em que a edição do jornal começa a fechar. Hora em que a Marta está na ioga e, por isso, desliga o celular e fica incomunicável. Hora imprópria para todos nós, mas acho que um suicida não há dia, tarde ou noite. O tempo deve ficar estagnado, em suspenso.”
Muito mais que uma literatura poderosa e bem construída, Crocodilo é um exercício pleno de empatia e respeito, uma busca não pela devastação que atinge o outro, mas pelas tempestades que todos carregamos conosco.
CROCODILO | Javier A. Contreras
Editora: Companhia das Letras;
Tamanho: 184 págs.;
Lançamento: Outubro, 2019.