A escritora Natalia Timerman transita entre vários mundos: entre a literatura e a medicina, a mãe e a profissional, a novidade e a ancestralidade. Conciliando tudo isso, está a sua carreira cada vez mais consolidada na literatura: sua obra Copo Vazio, publicada em 2021 pela Todavia, já havia ganhado enorme repercussão ao narrar uma história de ghosting, hábito cada vez mais comum de, em relacionamentos amorosos, dar um “perdido” no sujeito desejado, sumindo sem explicações.
Em agosto de 2023, Natalia lançou pela Todavia o romance As Pequenas Chances, em que provoca uma certa mistura entre os limites da ficção e da não ficção para falar sobre o luto causado pela morte de seu pai, Artur. Em entrevista exclusiva à Escotilha, a escritora fala sobre as escolhas feitas para a escritura da obra, suas influências literárias e sobre a emergência de uma espécie de movimento informal de uma literatura que reflete sobre a morte.
Escotilha » Natalia, o seu livro faz um tocante relato de uma mulher lidando com o luto do pai. Parece-me, levando em consideração os livros que li nos últimos anos e os lançamentos, de que houve possivelmente um aumento de obras literárias que lidam com a morte e com a perda de entes queridos. Você sente uma conexão do seu romance com algo que talvez esteja circulando na cultura?
Natalia Timerman » A gente acabou de passar por uma pandemia e houve uma quantidade muito grande de mortes. Muita gente perdeu gente, ou conhece quem perdeu gente durante a pandemia. Mesmo antes disso, acho que a gente já estava lidando com um momento de transição entre gerações, tendo que assumir a responsabilidade. Pelo menos eu sinto isso, com minha idade.
Creio que faz parte desse momento lidar com a orfandade, de não ter mais quem dite as regras. Acho que escrever sobre a morte do pai é também escrever sobre a morte da tradição. A gente está lidando com isso em vários sentidos: um esgotamento das tradições diante do mundo em que a gente vive hoje. Talvez escrever sobre morte seja escrever sobre algo que está circulando na cultura de várias formas.
Sabemos, pela experiência colateral que temos com elementos da sua vida, que a sua personagem se chama Natalia e é médica, como você, e que ela perdeu seu pai Artur, como você. Contudo, quando chegamos à parte final do livro, temos uma pequena surpresa por uma revelação dada no epílogo. Eu queria que você me contasse um pouco como se deu essa escolha narrativa, e se optar por não situar a obra rigidamente dentro da não-ficção te trouxe alguma liberdade.
“Eu não queria falar apenas sobre a morte e a ancestralidade, mas também sobre literatura”.
Natalia Timerman
Eu nunca cogitei que meu livro fosse não ficção: ele já nasceu como ficção. Embora tenha algo de autobiográfico, mas a estrutura inteira do livro é ficcional. Por exemplo, o encontro da narradora Natalia com o médico de cuidados paliativos, que abre o livro, nunca aconteceu. Então é tudo ficção, tirando o “coração” do livro, que não é. Digamos que é um corpo ficcional para um coração autobiográfico.
Isso se dá por alguns motivos. O primeiro é a liberdade que o romance dá, e eu queria ter essa liberdade para escrever. O segundo é que eu achei que a ficção é o que melhor sustentaria o que eu tinha para dizer. E, por fim, eu não queria falar apenas sobre a morte e a ancestralidade, mas também sobre literatura. O epílogo tenta inscrever o meu livro dentro de uma discussão literária, sobre escrita de si e a própria ficção.
Em As Pequenas Chances, em vários momentos Natalia reflete sobre suas origens judaicas, e entendemos que a morte de seu pai a aproximou muito não apenas do aspecto religioso pura e simples de sua família, mas também de sua ancestralidade. Eu queria saber qual a importância que a escrita do livro – além da experiência do luto – teve neste movimento de olhar para as próprias origens.
Com certeza, escrever esse livro me mobilizou muito para olhar para as minhas próprias origens. Provavelmente, se eu só vivesse o luto, sem a escrita do livro, talvez eu não olhasse. Estou vivendo isso mais uma vez agora, em que me preparo para escrever o livro sobre a minha mãe.
Então o livro teve uma importância fundamental nesse movimento de olhar para as minhas origens. Não gosto de dizer que a escrita é a maneira que eu tenho lidar com a vida porque eu não escrevo para nada: a escrita é o que eu faço com a vida e com o que acontece comigo. Então essa foi a maneira com que eu pude acessar essa questão da minha ancestralidade.
Para além das origens familiares, queria te perguntar sobre as suas ancestrais literárias. Além de Annie Ernaux e Moacyr Scliar, que são citados em epígrafes em As Pequenas Chances, quem mais influenciou a sua escrita?
Eu li muita coisa sobre luto, quase nada teórico. No agradecimento, eu cito algumas obras, como a Valéria Luiselli com Arquivo das Crianças Perdidas, que narra uma viagem também; Morreste-me, de José Luís Peixoto, também está presente no livro; a Lucía Berlin também está. Talvez o mais próximo de um registro teórico, não ficcional ou literário, sobre o luto que me aproximei foi o livro da Ana Claudia Quintana Arantes.
Também li Noemi Jaffe, O Pai da Menina Morta, do Tiago Ferro… eu queria ver como as pessoas estavam transformando o luto em literatura. Karl Ove Knausgård, que é um autor que eu estudo, certamente teve influência sobre como falar da própria vida, ainda que meu livro não se filie totalmente ao fazer literário dele, o que se esclarece principalmente no epílogo.
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