Para adentrar o universo consolidado em Manual da Faxineira, é provável que você tenha que saber um pouco sobre a sua autora. Isto porque Lucia Berlin permeia os contos de seu livro com elementos saídos de sua vivência: o alcoolismo, os casamentos desfeitos, a carreira profissional errante (trabalhou como faxineira, enfermeira, recepcionista, telefonista, até tornar-se professora e escritora), a vida familiar marcada por desgostos, amores e rompimentos, as diferentes habitações entre os Estados Unidos, o México e o Chile.
Tudo isso perpassa as personagens de Lucia – quase sempre mulheres que convivem com outras mulheres, que se casaram diversas com músicos de jazz ou artistas, que traem seus maridos sem muitos conflitos morais, que cuidam de seus parentes convalescentes, que lutam para se sobrepor aos seus vícios. A escritora utiliza em sua obra elementos do que hoje se convenciona chamar de “autoficção”, ou seja, ela empresta elementos da sua própria vida para compor seus sujeitos e suas histórias. Sabemos que as narrativas remetem muito ao que sabemos da própria Lucia, mas não compreendemos em que medida os enredos correspondem à “realidade” do que de fato a autora viu ou vivenciou.
O que encanta na escrita de Lucia Berlin é a sua honestidade pujante: o cenário que os contos tecem é o dos outsiders, das pessoas que vivem à margem, sempre à beira de um colapso. São viciados em drogas, traficantes e sobretudo alcoólatras, que atravessam situações em que quase sentimos na pele (sem dramas ou sensacionalismo barato) os seus problemas. São contos que fluem na leitura e conseguem a façanha de nos transportar para uma vida que não é a nossa. Tudo isso é narrado sem qualquer tipo de pieguice ou lição de moral barata – e pincelado, por mais inóspito que possa parecer, por uma boa dose de humor negro.
O que encanta na escrita de Lucia Berlin é a sua honestidade pujante: o cenário que os contos tecem é dos outsiders, as pessoas que vivem à margem, sempre à beira de um colapso.
Alguns exemplos da densidade de Manual da Faxineira: em um dos contos mais impactantes, acompanhamos uma mulher que é levada até uma clínica clandestina de abortos no México. Noutro, um casal de alcoólatras parece seduzir involuntariamente um advogado certinho que é contratado para livrar a mulher da cadeia. Em mais um, uma mulher decide trair o marido apenas para escapar do marasmo de sua vida. Em outra história, uma mãe adolescente sem ter onde se refugiar precisa ceder favores sexuais a um traficante que a abrigou depois de que seu parceiro foi preso. Já em um dos contos que abrem o livro, tal como um soco, uma menina ajuda o avô, um dentista bêbado, a tirar todos os seus dentes depois que desmaia de tanto uísque. O resultado é eletrizante e algo surreal.
Outra característica interessante de Manual da Faxineira é que alguns personagens percorrem toda a obra, e retornam ao longo dos contos, com nomes trocados ou não. Uma dessas linhas narrativas que se repetem é a trama tocante que envolve uma narradora (provavelmente Lucia?) que cuida da irmã que está morrendo de câncer no México, e que relembra junto dela a infância difícil que tiveram ao lado de uma mãe emocionalmente desconectada das filhas. Berlin tem como trunfo essa abordagem sensível, ainda que seca, a situações extremamente arrasadoras. Sua técnica talvez se traduza na explicação dada pela narradora em um de seus contos: “não me importa contar coisas terríveis às pessoas se posso transformar em algo gracioso”
A real é que Manual da Faxineira beira o indizível: seu impacto emocional foge ao alcance das palavras. É um livro que permanece com o leitor depois que a leitura se finda.
MANUAL DA FAXINEIRA | Lucia Berlin
Editora: Companhia das Letras;
Tradução: Sonia Moreira;
Tamanho: 536 págs.;
Lançamento: Abril, 2017.