Desde pequenos, uma frase costuma ecoar eventualmente entre nós: a morte é a única certeza da vida. Ter consciência de sua inevitabilidade, contudo, não é saber sobre a multifacetada experiência do luto, que se manifesta enquanto presença, mais que ausência, para quem perde um ente querido. É neste terreno – no que se acaba e no que brota a partir da morte – que habita As Pequenas Chances (Todavia, 2023), romance da escritora Natalia Timerman.
A obra parte do reencontro casual no aeroporto com o médico de cuidados paliativos que acompanhou o pai da narradora, Natalia, até a sua morte. Artur, que era médico, assim como a filha, foi acometido por um câncer, o que fez com que a família tivesse que conviver, ainda em vida, com um luto que se desdobrava de maneira gradativa, como uma dolorosa despedida – tão dura quanto bela.
Assim, o que se vê neste tocante romance é o testemunho de Natalia em relação a tudo o que vai surgindo nestes momentos em que, frente à tragédia iminente, nasce uma experiência que beira o sublime. O caviar trazido do aeroporto para agradar o pai, as lembranças dos pacientes de mais de trinta anos, a chance de ver uma montagem de Roda Viva no Teatro Oficina: uma série de eventos que, em outros momentos, talvez soassem banais, mas que se tornam preciosidades às quais nos agarramos na luta por trazer a permanência em vida daqueles que já partiram.
Natalia Timerman nos fala em seu lindo romance sobre as pequenas chances de vida que surgem a todo momento – inclusive nos de morte.
Ao trazer a perspectiva de sua própria vida, Natalia Timerman parece ter encontrado as tintas mais valiosas para compartilhar essa história que, ao mesmo tempo, é sua e não é. Há aqui um parentesco com o algo incapturável gênero da auto ficção, fazendo com que o romance tenha um certo diálogo com uma autobiografia, mas com a liberdade para ousar para além dos limites impostos à não-ficção – o que vai ficando mais evidente ao fim do livro, em que é revelado uma espécie de jogo que foi feito com o leitor.
Por outro lado, a história de As Pequenas Chances não é (apenas) de Natalia Timerman, posto que é coletiva. Há uma pista já dada na epígrafe que abre o livro, na frase da escritora Annie Ernaux que lembra: “história familiar e história coletiva são uma única coisa”. Frente à perda do pai, a narradora Natalia adentra em um mergulho na ancestralidade que é representada por ele. De pessoa avessa à religiosidade, ela começa a se aproximar dos protocolos judaicos que não lhe interessaram durante uma boa parte da vida, entendendo por fim a função real que eles desempenham na família.
Ao mesmo tempo em que dialoga com a historicidade, o romance toca profundamente na dor individual da perda de um pai ou uma mãe, que, para os que têm sorte, é a representação viva do amor incondicional. “Tuta sempre abria um sorriso cristalino ao ver os netos. Sempre abria esse sorriso ao nos ver. Acho que parte da dor da sua partida é saber que não há mais ninguém no mundo, além da minha mãe, que abra um sorriso tão verdadeiro só por me ver, como se minha mera existência fosse uma alegria”.
A morte como encontro com o passado
Organizado em três partes, As Pequenas Chances transita do primeiro eixo (o resgate das memórias sobre o processo da perda do pai), ao segundo (a ansiedade da vinda da irmã, uma engenheira naval que passa boa parte do tempo no mar, para acompanhar os últimos momentos do pai), até o terceiro, em que Natalia e sua família fazem uma viagem ao leste europeu que acabam a levando a um resgate da própria ancestralidade.
É por meio da captura dessa história, pelas pequenezas que sobram dela na vivência cotidiana (como entender por que há uma grande quantidade de pratos com batata e carboidratos em geral na sua família) que ela, aos poucos, vai entendendo que ninguém fica para trás, mesmo que sua memória individual seja aos poucos apagada. São avós, bisavós, trisavós que sustentam a mulher que a protagonista que se tornou, o que possibilita que ela entenda, por fim, de onde veio uma força estranha que a fez parir o filho Jorge (em uma das cenas de parto mais potentes já registradas na literatura).
Em uma espécie de círculo infinito da vida, uma roda da fortuna em que tudo o que sobe, desce, e o que nasce, morre e então renasce, Natalia Timerman nos fala em seu lindo romance sobre as pequenas chances de vida que surgem a todo momento – inclusive nos de morte.
As Pequenas Chances | Natalia Timerman
Editora: Todavia;
Tamanho: 208 págs.;
Lançamento: Agosto, 2023.
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