Poucos escritores suscitaram tantas discussões no século 20 quanto Vladimir Nabokov quando publicou o controverso clássico Lolita, em 1955. Muito além de um livro-tabu, a obra demonstrou o raríssimo dom de Nabokov para a escrita de ficção, trazendo personagens icônicos como o narrador Humbert Humbert, culto, genial e diabólico, e a vítima de sua obsessão, Lolita.
Nascido em São Petersburgo, Nabokov exerceu um grau de domínio sobre a língua inglesa como o fizeram poucos escritores nativos. O escritor russo radicado nos Estados Unidos publicou diversas obras originalmente em inglês e não em sua língua materna, como foi o caso de Lolita.
Sete anos após a publicação da sua obra mais polêmica, Nabokov escreveu outro livro que assegurou seu lugar entre os grandes escritores de língua inglesa do século XX. Publicado em 1962, Fogo Pálido, embora menos conhecido que Lolita, é uma obra de imenso engenho ficcional, com uma estrutura narrativa complexa e labiríntica que mescla ficção, comentário literário e poesia e permite leituras divergentes a partir de diferentes páginas e percursos.
O poeta e o professor
De fato, o próprio prefácio anuncia a não linearidade do livro que o leitor tem em mãos: há diferentes formas de ler Fogo Pálido, e cada uma pode levar a uma conclusão diferente. Isso ocorre porque Fogo Pálido não é uma única narrativa, mas duas, centradas em duas figuras antagônicas de igual mistério e inteligência.
A primeira metade do romance consiste no poema épico “Fogo Pálido”, composto de 999 linhas de verso escritas pelo célebre e recém falecido poeta americano John Shade. O poema, de cunho autobiográfico e rígida métrica, revela detalhes sobre a vida e a carreira de Shade, figura que parece encarnar com ironia diversos estereótipos dos poetas americanos da sua geração.
Fogo Pálido é muitas coisas ao mesmo tempo: é um mistério de assassinato, um comentário crítico sobre o estado da poesia e da ficção à época de sua publicação.
Por sua vez, a segunda metade compõe o “verdadeiro” cerne do romance: os comentários do professor Charles Kinbote, autor do prefácio, autodeclarado editor da obra e detentor exclusivo dos direitos de publicação do último poema de Shade. Irônico, patologicamente egocêntrico e possivelmente insano, os comentários críticos de Kinbote vão muito além da análise literária do poema, revelando sua obsessão pelo poeta, seus terríveis distúrbios de identidade e a detalhada história da nação de Zembla, um país que existe possivelmente apenas na sua imaginação, cuja história de glória, revolução e decadência é a outra grande obsessão do professor.
De acordo com Kinbote, “Fogo Pálido” (o poema, não o romance) deveria conter ao todo 1.000 linhas, mas sua conclusão teria sido interrompida após o misterioso assassinato de John Shade. Aos poucos, os detalhes por trás da morte do poeta são revelados, culminando no clímax simultâneo do poema e do comentário, ambos de desfecho perturbantemente aberto.
Um ovo Fabergé
Fogo Pálido é muitas coisas ao mesmo tempo: é um mistério de assassinato, um comentário crítico sobre o estado da poesia e da ficção à época de sua publicação, um estudo dos distúrbios de uma personagem obcecada; mas, acima de tudo, é uma narrativa não convencional que desafia tentativas de classificação e que permite que cada leitor chegue a uma conclusão diferente ao terminar de ler a obra.
É claro, todos esses artifícios literários seriam difíceis de sustentar sem que as temáticas e as personagens fossem instigantes e complexas. Nabokov é conhecido pela originalidade de suas personagens, que parecem não encontram similares em toda a literatura, como Humbert Humbert, um dos mais celebrados personagens do cânone nabokoviano. Tão icônico quanto o terrível narrador de Lolita é aquele a quem poderíamos chamar de protagonista de Fogo Pálido, o irascível e orgulhoso professor Charles Kinbote.
À medida que a narrativa avança, e somos apresentados intermitentemente à vida de John Shade pelos olhos de um fã obsessivo e também à história da enigmática pátria de Kinbote (a onírica terra invernal de Zembla), torna-se cada vez mais claro que há algo de profundamente estranho nessa versão dos fatos, e os motivos que levaram à sua posse dos manuscritos de Shade tornam-se cada vez mais suspeitos.
Ao apresentar a possibilidade de diferentes ordens de leitura, Fogo Pálido é um enigma escondido em outro enigma escondido em outro enigma, ou, como disse a escritora Mary McCarthy: “Um ovo Fabergé, um brinquedo de engrenagens, um problema de xadrez”.
Ao término da obra, é difícil encontrarmos respostas definitivas para suas questões centrais: Qual é a verdadeira identidade do homem que assassinou John Shade? A nação de Zembla é um país que existe no mundo de Fogo Pálido ou apenas fruto dos delírios de grandeza de um professor russo exilado nos Estados Unidos? Seria o próprio John Shade uma projeção de Kinbote? Quem é, afinal, o verdadeiro autor da obra?
Ao resistir responder diretamente a essas questões, Fogo Pálido se consolida como um magnífico mistério que, no cânone nabokoviano, merece estar lado a lado com o clássico Lolita em termos de qualidade e complexidade.
FOGO PÁLIDO | Vladimir Nabokov
Editora: Companhia das Letras;
Tradução: Jorio Dauster e S. Duarte;
Tamanho: 304 págs.;
Lançamento: Janeiro, 2004.