Conforme prometido no primeiro texto sobre tradução (clique aqui para conferir), vamos falar um pouco sobre esse paradoxo de ser ou não ser da tradução. O texto traduzido é ou não do autor? De fato, essa é uma questão aparentemente complexa, mas simples de se definir. Por ser um tanto paradoxal, dá um pouco de nó na cabeça, mas não um difícil de desatar.
Então, vamos aos fatos: o texto traduzido é do autor.
Sim, pois a essência do texto, a criação da obra, o empenho intelectual original é do autor. São do autor as personagens, o cenário, a história, o desenvolvimento, a trama. Disso ninguém dúvida, pois é ele que sai pelo mundo fazendo sucesso com suas letras. Porém…
Texto traduzido é do tradutor também
Sim, minhas caras e meus caros, o texto em português não foi escrito pelo autor. Mesmo que o texto original tenha sido. É meio complicado de entender, mas nem tanto. Vamos tentar desembaraçar este nó, assim deixamos às claras quem é quem nessa confusão de gentes literárias.
O texto original, escrito em um idioma que não o português, é submetido a uma operação complexa que é a tradução. Que tira o texto de seu berço natal, ou seja, de seu idioma de origem, e o converte (não automaticamente) em outro idioma, no nosso caso, o português brasileiro.
Para facilitar ainda mais: imagine que você tem uma casa escocesa feita de Legos, com todas as características de uma casa escocesa, janelas, portas, assoalho, sótão, ovelhas, porão etc. E alguém pede para que você reconstrua uma casa brasileira com as mesmas peças. Você desmonta a casa escocesa, pecinha a pecinha. Depois remonta a casa com um estilo bem nosso, com um quintalzinho para a churrasqueira, sem sótão, com telhado menos inclinado, fiação cheia de gato da NET na frente… enfim, outra casa, mas com as mesmas peças. Quem fez a casa escocesa criou aquela casa com peças próprias. Ele é o responsável por aquela casa escocesa e dono das peças. Você fez a casa brasileira usando as pecinhas de outro. As peças são dele, mas a casa brasileira é sua.
Muita gente ainda se equivoca dizendo que tradutor é coautor.
E a tradução na lei?
Segundo a Lei 9.610/98, ou Lei de Direitos Autorais, o tradutor é um autor de obra derivada. Ou seja, equipara-se a quem transforma um livro em filme, um poema em espetáculo de dança ou um filme em peça de teatro. Muita gente ainda se equivoca dizendo que tradutor é coautor. Só seria se estivesse criando a obra junto com o autor, o que não acontece por uma questão de impossibilidade. Para que um livro seja traduzido, primeiro precisa ser escrito, mesmo que não seja uma versão final. A ideia já deve estar no “papel”.
Um intruso na minha leitura
Vamos combinar uma coisa aqui, só entre a gente: no próximo livro traduzido que você pegar, dê uma olhadinha na página de rosto, onde fica o nome do autor e o título do livro em letras grandes. Menorzinho, em geral embaixo do título, estará “Tradução de” ou “Traduzido por” e o nome de uma pessoa.
Essa pessoa passou alguns meses debruçada sobre o texto original deste livro (que chamamos de texto-fonte), desmontando as pecinhas de Lego daquele idioma para remontar bonitinho e possibilitar que você lesse aquele texto traduzido (o texto-alvo). Não fez isso sozinho, claro, o processo editorial junta uma galera para que o livro chegue às mãos dos leitores (vamos falar disso em outros posts). Mas foi ela que mergulhou mais fundo no texto – assim esperamos – e trouxe à tona o texto em português brasileiro.
Somos discretos
Sei que muita gente tem um crush intelectual e uma relação quase fanática por quem escreve. E como tudo em literatura é salto de fé, essa gente costuma ignorar inconscientemente o tradutor, deixando de lado esse terceiro elemento intruso. Tira o à trois indesejado desse ménage.
Infelizmente, é impossível não nos infiltramos nessa relação tão bonita. Para todo mundo, em algum momento, essa relação existe por conta dessa intrusão. Para muita gente, ela só existe pois essa intrusão existe. Mas não se preocupe, costumamos ser muito discretos. Quanto melhor estiver nosso trabalho, quanto mais afinado com o escritor estivermos, quanto mais bem acompanhado estivermos no processo editorial, menos você conseguirá nos enxergar.
Uma editora com que trabalhei alguns anos atrás me disse: “Quanto menos eu lembrar de você durante a leitura de sua tradução, mais vou querer voltar a trabalhar com você”. E então vale o esforço para ser discreto e deixar brilhar quem tem que brilhar, o autor. Porém, não se esqueça: somos discretos. Mas não somos invisíveis.