Siem Sigerius é um respeitado reitor de universidade na Holanda. Quando mais jovem, ele foi um excelente atleta de judô e, após uma lesão, acabou descobrindo por acaso um talento impressionante para a matemática, tornando-se então um docente genial. Contudo, por trás desta figura pública, de profissional e pai de família respeitável, Sigerius esconde um passado nebuloso e uma personalidade um pouquinho estranha.
Bonita Avenue, lançado pela editora Alfaguara, com tradução de Cássio de Arantes Leite (que deve ter sofrido muito, diga-se), vem sendo festejado pela crítica internacional, pois Peter Buwalda não apenas nos apresenta um recorte perturbador da classe média-alta holandesa, como também constrói a sua história com um virtuosismo técnico que realmente chega a impressionar, principalmente por se tratar de um livro de estreia.
Assim como seu compatriota, Arnon Grunberg, autor do excelente Tirza, Buwalda parte do cotidiano banal para, aos poucos, se aprofundar nos cantos mais obscuros daquelas vidas aparentemente comuns e então escancarar os esqueletos nos armários. E eles são bem sinistros.
Siem Sigerius curte putaria na internet. Problema nenhum nisso, tenho até amigos que, etc, mas a coisa ganha contornos um pouco mais complicados quando ele entra em um dos sites pornográficos que assina e acaba se deparando com uma garota que se parece muito com alguém bem próximo: a sua enteada.
E aí que começa o paradoxo que movimentará toda a narrativa: sendo um ávido consumidor daquele material, que moral ele teria para questioná-la? E caso opte pelo silêncio, como conviver com essa merda na cabeça? Como levar uma vida normal sabendo disso? Um dos personagens tenta explicar a situação de uma maneira, digamos, não muito sutil, quando uma amiga lhe diz que tem um filho e que ele é gay:
Peter Buwalda não apenas nos apresenta um recorte perturbador da classe média-alta holandesa, como também constrói a sua história com um virtuosismo técnico que realmente chega a impressionar, principalmente por se tratar de um livro de estreia.
“Fantástico. Melhor ainda. Vamos supor que o Ingmar e o companheiro dele são uns caras legais e agradáveis (…). Ok. Então um dia alguém te avisa. Dá uma olhada em tal página da internet, e você faz isso e descobre um site construído com o maior capricho, um site que seu filho atualiza toda semana com fotos dele mesmo. Fotos fresquinhas de Ingmar de pau duro. E, pagando, a pessoa ganha acesso a milhares de fotos mostrando a enorme coleção de carne e de plástico que enfiam no ânus de Ingmar lubrificado com cuspe – o tempo necessário para aquele rostinho bonito se contorcer numa careta e o pau do saco depilado gozar. No domingo seguinte, você encontra os dois outra vez, seu filho e seu genro, mas agora em carne e osso. Eles vieram pra jantar”.
Este tom explícito a respeito da sexualidade não está tão presente ao longo do livro como ocorre, por exemplo, em Homens, Mulheres & Filhos, de Chad Kultge (que trata de um tema muito semelhante, mas não com tamanha profundidade. Clique aqui para ler a crítica), mas quando surge é desta forma, feito uma porrada na cara do leitor. É por isso que as comparações com Philip Roth até que fazem sentido.
O desenvolvimento dos personagens é orquestrado de maneira muito engenhosa e pode causar estranheza de início. A história é contada a partir de três pontos de vista bem diferentes: do próprio Siem Sigerius; de Aaron, o genro mentalmente instável; e Joni, a enteada. Os capítulos vão se alternando entre os três, mas tudo é narrado de forma não linear ao longo de várias décadas e ainda alternando a primeira e a terceira pessoa. O início é um tanto confuso por causa disso e até cogitei a possibilidade de pedir pelo amor de Deus pra alguém me explicar o que estava acontecendo, mas conforme as páginas avançam e você começa a reconhecer os personagens, as coisas vão se encaixando e o enredo vai ficando bem mais claro (e perturbador).
A virtuose narrativa de que falei anteriormente diz respeito a essa estrutura relativamente complexa (não que o livro seja difícil, ok?), que entre outras coisas conta com um narrador que sofre de um problema mental, mas não exatamente como o de O Som e a Fúria, do Faulkner, pois o Aaron de Buwalda vai perdendo o equilíbrio apenas aos poucos e nem sempre o leitor consegue precisar exatamente em que momento o que ele está dizendo começou a não fazer muito sentido. Enfim, há muito vigor e consistência naquilo que Peter Buwalda escreve, ele consegue fugir dos estereótipos, dos caminhos fáceis para “agarrar” o leitor e segue um caminho atípico, meio torto até. É uma estranheza bem-vinda, pois faz com que esse livro permaneça muito acima da média em relação a diversos contemporâneos.
Assim como em Tirza, há em Bonita Avenue (nome da rua em que a família de Sigerius vai morar quando se muda para a Califórnia, em busca de um ensolarado sonho americano?) um pouco de humor que é tão sutil quanto esquisito e que acaba sendo interrompido para se tornar algo insano e brutal. A ideia é mostrar o quanto o ser humano pode ser pequeno e ridículo, bem como esmiuçar nossos joguinhos de aparências sociais e escancarar o que há de mais sujo ali dentro.
É como se os dois escritores, num movimento muito rápido, pegassem um coelhinho bonito e, depois de um truque de mágica, o virassem do avesso fazendo as vísceras voarem na cara do leitor. Em alguns momentos do livro, tal como nos filmes dos Irmãos Coen, você ri para logo em seguida pensar “cara, isso é horrível, é degradante, como eu posso estar rindo disso?”. Resposta fácil: você ri de nervoso. Mas por que exatamente você ficou nervoso?
BONITA AVENUE | Peter Buwalda
Editora: Alfaguara;
Tradução: Cássio de Arantes Leite;
Tamanho: 536 págs.;
Lançamento: Fevereiro, 2016.