O mais recente romance do escritor norte-americano Jonathan Franzen, Encruzilhadas, recém-lançado pela Companhia das Letras, não é um daqueles livros que podem ser lidos em um fim de semana. Além de ser volumoso, com 600 páginas, a obra exige que o leitor a ela se entregue com vontade e empenho.
Como em As Correções e Liberdade, dois de seus títulos mais importantes, Franzen fala mais uma vez sobre família, e não em defesa dessa instituição. Muito pelo contrário: o lar que ele descreve em seu romance está longe de ser doce refúgio, ou abrigo. É um locus de dor, frustração, segredos e mentiras.
Pacientemente, o escritor estabelece o território para que os personagens, complexos, falhos, e por vezes abjetos, se revelem em seus altos e baixos. Embora haja eventos de intensa dramaticidade, como um acidente de carro, estupros, tentativa de suicídio, adultério, tráfico de droga e até um incêndio, Franzen consegue o grande feito de tornar esses acontecimentos tão orgânicos dentro da narrativa, que seu potencial, digamos, melodramático e inverossímil, é esvaziado. Temos a sensação de estarmos lendo uma história sobre a vida como ela de fato é.
Explorando os temas profundos de religião e hipocrisia
O romance, o primeiro de uma trilogia anunciada, se passa na década de 1970 em um subúrbio de Chicago e, em seu centro, estão os Hildebrandts, que sem ser idêntica, lembra muito outras famílias do Meio-Oeste americano que povoam outros de seus livros. Embora não seja propriamente sobre religião, o tema atravessa a obra em vários sentidos.
Jonathan Franzen lança sua mais recente obra, ‘Encruzilhadas’, explorando os desafios da vida familiar.
O título do livro, Encruzilhadas, se refere ao nome de um popular grupo jovem em uma igreja protestante local, mas tem outro significado. O patriarca da família em torno da qual a trama é construída, Russ Hildebrandt, é o idealista e progressista pastor dessa igreja, um homem em plena crise da meia-idade, que, insatisfeito com seu casamento, se vê encantado por uma jovem viúva, voluntária de um projeto social que ele lidera.
Russ é fã de blues de raiz e seu ídolo maior é o cantor e compositor Robert Johnson, que, conforme reza a lenda, vendeu a alma ao diabo em troca de seu dom genial como violonista. O encontro com o demônio teria ocorrido na encruzilhada entre as Highways 49 e 61 em Clarksdale, no estado do Mississippi.
O interessante é que, através das páginas do livro, Russ, sua esposa Marion, e seus filhos, Clem, Becky e Perry, enfrentam crises morais e de fé. Os caminhos de todos cruzam, metaforicamente, com o que o diabo pode lhes oferecer em troca de suas respectivas almas.
‘Encruzilhadas’: os dilemas dos Hildebrandts
Russ se vê diante de um dilema existencial. Quando jovem, foi um militante idealista, hoje se percebe como uma sombra do que um dia foi, uma fraude, incapaz de inspirar os jovens de sua igreja, tampouco seus filhos, que parecem ser jovens estáveis, até felizes, mas, na verdade, também enfrentam seus infernos pessoais.
Clem, o mais velho, é estudante universitário e volta para a casa da família com a notícia de que se alistou para lutar na Guerra do Vietnã, o que ultraja Russ, um autoproclamado pacifista. Becky, por sua vez, está terminando o ensino médio, é a princesa “perfeitinha” da escola, linda e popular, porém também se sente de alguma forma uma farsa, o que a leva buscar na contracultura a subversão da própria imagem. O caçula, Perry, por fim, tem altas habilidades, uma inteligência muito acima da média, mas se sente um peixe fora d’água e começa a traficar drogas no colégio.
Jonathan Franzen trança essas histórias todas com lentidão. Não tem pressa, o que pode ser um problema para leitores mais afoitos, impacientes. Quem de certa forma quebra esse ritmo, ao meu ver intencional, é Marion, a mulher de Russ e mãe de seus três filhos. Por trás de sua fachada entediada de dona de casa imersa em frustrações, se esconde uma história pessoal não revelada tão fascinante e surpreendente, que parece uma espécie de livro dentro do livro.
Franzen vai revelando Marion a nós, leitores, nos liberando acesso a fatos de sua vida que Russ e os filhos desconhecem: esteve internada em um sanatório quando tinhas seus 20 e poucos anos; viveu um tumultuado caso com um homem casado, vendedor de carros, em Los Angeles, de quem engravidou; foi estuprada várias vezes por outro sujeito, que se propôs a ajudá-la.
Como se percebe, Encruzilhadas eviscera uma família (e uma sociedade) que, aos olhos de muitos, parece abominavelmente estável e feliz. Ao longo de suas seis centenas de páginas, a ação flui e se desdobra em uma teia complexa, entre o monótono e o envolvente, na qual há momentos de alta dramaticidade que irrompem como raios de uma tempestade. O livro reafirma Jonathan Franzen como um grande escritor de nosso tempo.
ENCRUZILHADAS | Jonathan Franzen
Editora: Companhia das Letras;
Tradução: Jorio Dauster;
Tamanho: 600 págs.;
Lançamento: Maio, 2023.
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