Toda a obra da cineasta argentina Lucrécia Martel se dá na perspectiva do corpo e da fisicalidade das relações. É assim com Pântano e La Niña santa, mas também com Zuma. O carioca Márwio Câmara explora esses mesmos elementos em seu primeiro romance, Escobar. Para Martel e Márwio, o alheamento é o mal do século. É dessa distância que surgem as relações e as impossibilidades de trânsito e movimento.
Nascido dos impasses e cruzamentos de um Brasil que tem ido ao pó, Escobar é uma tentativa de resposta afetiva a um mundo descompasso. É impossível não notar a referência ao personagem mais negligenciado de Machado de Assis, o amigo de Bentinho com quem Capitu teria um caso, e como o Escobar do Bruxo do Cosme Velho, o de Câmara também é um sujeito às avessas, misterioso e perdido.
O romance é formado por partes e as partes por cenas. A tentativa de retrato do cotidiano se dá a partir de recortes e fragmentos que vão apresentando ao leitor os personagens, apesar de se tratar, sobretudo de um livro de linguagem e de ideias e que, às vezes, soa pesado. São recortes da vida real mediada pelas redes sociais, em que as pessoas riem, choram, se desesperam e se apaziguam em tempo real, para uma plateia invisível. Trilhas sonoras, poemas e elocubrações são a cama para Escobar, filho direto da literatura pós-moderna e que, como Luci Collin nos contos de Dedos impermitidos, seu livro mais recente, se coloca de peito aberto às vicissitudes.
Escobar é um romance de amadurecimento e de encontro, de tentativas e erros, que sabe escancarar as fissuras de uma geração perdida no imediatismo e no apagamento das relações.
Se por um lado o excesso de linguagem e mecanicismos linguísticos pode afastar um leitor menos experiente, por outro existe uma vocação para a pacificação diante daquele que nos é distinto. Escobar é um homem que consegue encarar seu erro emocional e conceber uma conexão que há muito parece perdida. Ainda que isso também tenha um preço, e para alguns tenha certo apelo melodramático, Escobar se desenvolve bem e elabora, sem a inocência cabotina – que tem apontado muitas tentativas de diálogo –, a ideia de uma certa harmonia.
Câmara esgarça as noções de individualidade e explora, em sujeitos complexos, as muitas formas de amor. Nesse sentido, o romance flerta com a fluidez dos gêneros literários, mas também de identidade. A paixão é a força propulsora desses jovens perdidos e desiludidos, que se atracam a outros corpos em busca de refúgio. São pontos que o autor já havia abordado nos relatos de Solidão e outras companhias, publicado tempos atrás.
Escobar é um romance de amadurecimento e de encontro, de tentativas e erros, que sabe escancarar as fissuras de uma geração perdida no imediatismo e no apagamento das relações. Márwio Câmara, apesar do tom sentimental, evidencia as fissuras que têm repartido o mundo entre eles e nós, criando uma obra interessante e que não deve ser lida apressadamente.
ESCOBAR | Márwio Câmara
Editora: Moinhos;
Tamanho: 130 págs.;
Lançamento: Abril, 2021.