O nazismo é desses fenômenos desviantes que se engendram de forma paulatina e se imiscuem de justificativas, se enreda baseado no desespero e no medo, mira num bode expiatório e faz dele o seu alvo principal, o inimigo de todos e o transforma no eixo fortalecedor do seu discurso.
Sabemos que todo fascismo se alimenta disso. O nazismo foi essa tenebrosa entidade que entranhou-se no nosso imaginário — mesmo que hoje exista um farto processo de esmaecimento desse episódio histórico — e nos impulsiona para questionamentos básicos, tais quais: como pode ter surgido, ter ido tão longe e ter sido aceito de forma tão poderosa? As razões para o surgimento e fortalecimento dos ideais nazistas estão fartamente documentadas numa bibliografia tão enorme quanto confusa, mas bastante clara no que concerne aos contornos atrozes do que foi feito nesse período.
O nazismo não foi feito por seres desumanos — aqui na perspectiva daquilo que não parece humano, que não tem características humanas. Por mais forte que seja a tendência a considerar o discurso de descaracterização dos protagonistas das barbaridades perpetradas durante o nazismo, vale reforçar que aqueles que eram os articuladores do Partido Nacional Socialista eram pessoas “comuns”, que aspiravam grandes ascensões na vida, tinham medo, fome, tinham seus ideais, seus modelos de boa conduta, amavam e eram odiados — isso eles continuam sendo. Em suma, eram humanos, com todas as possibilidades de defeitos e qualidades. No entanto, “prefere-se acreditar que essas pessoas são monstros sanguinários, pois sua normalidade parece muito mais aterrorizante”.
Esses sujeitos que compuseram a nata do partido nazista tinham suas mulheres e filhos, eram pais amorosos, carinhosos e, mesmo durante o degringolar do Terceiro Reich, estavam preocupados com o futuro da sua família.
Explorar esse lado mais íntimo da elite nazista é o objetivo que costura o trabalho da neta de um ex-oficial da Força Aérea Alemã durante o período nazista que sempre evitou falar sobre seu obscuro passado. Foi esse tampo de silêncio sobre o passado que estimulou Tania Crasnianski a pesquisar e escrever oito perfis sobre as crias dos oficiais mais renomados do nazismo. O resultado disso é o livro Filhos de Nazistas, publicado no Brasil pelo selo Vestígio.
Explorar esse lado mais íntimo da elite nazista é o objetivo que costura o trabalho da neta de um ex-oficial da Força Aérea Alemã durante o período nazista que sempre evitou falar sobre seu obscuro passado.
O trabalho de Tania preenche essa lacuna editorial de forma bastante confiante. Consegue traçar o background familiar dos personagens fundamentais que estruturam as ações do nazismo alemão e estão na primeira linha de contato de Hitler.
Os filhos dos dirigentes nazistas eram ainda crianças de colo ou adolescentes deslocados da funesta realidade que se arquitetava ao redor deles. Eram alheios as tarefas executadas por seus progenitores. Vivendo completamente isolados dos atrozes crimes cometidos nesse período, esses pequenos privilegiados estavam envoltos em luxo, ostentação e fartura plena, enquanto judeus, ciganos, homossexuais e outros grupos elencados como inimigos pelo regime nacional-socialista viviam na completa penúria e alvo de sumário extermínio.
O livro de Crasnianski é uma obra de contrastes. Como superar a marca indelével e mortífera do nazismo? Como lidar com as cicatrizes que, mais de 70 anos depois, ainda sangram? Como administrar as explosões emotivas que são suscitadas diante de acontecimentos tão fora de qualquer realidade?
Tania vai delimitando essas respostas de forma cuidadosa ao colocar os filhos e as suas vivências no contra-plano do cenário fúnebre promovido pelo nazismo. Seus escolhidos notabilizam-se por serem os nomes mais proeminentes do nazismo, a elite da elite do Terceiro Reich. Nomes que marcam uma trajetória de terror na história da humanidade, como Heinrich Himmler, Hermann Göring, Rudolf Hess, Hans Frank, Martin Bormann, Rudolf Höss, Albert Speer e Josef Mengele, e seus respectivos filhos e famílias, são o objetivo de análise de Crasnianski.
O destino da vida dos filhos desses líderes nazistas foi marcado por completo. Carregar um sobrenome atrelado aos maiores horrores já provocados na história humana é um peso enorme. Mas, seguindo o questionamento de Tania, “devemos nos sentir responsáveis, ou mesmo culpados, pelo que nossos pais fizeram?”. Essa é a pergunta que amarra as intenções do trabalho feito pela autora.
Todos eles descobriram a dimensão dos crimes dos pais muito depois, por meio da repercussão externa, do julgamento de Nuremberg. Alguns deles, a exemplo de Grudun Himmler, filha do braço direito de Hitler e um dos responsáveis pelo Holocausto, manteve a imagem de herói do pai e alinhou-se na busca da preservação da sua memória, em consonância com as aspirações nazistas e de extrema-direita, espectro político onde permaneceu como ativista até o fim da vida; outros, como o Niklas Frank, filho de Hans Frank, o formulador jurídico que deu abertura para a implementação legal do Terceiro Reich e o responsável pelos guetos judaicos, incluindo o maior deles, o de Vasórvia, resolveram afastar-se da sombra paterna e vislumbrá-la a partir de um ponto de vista crítico, reforçando os crimes por eles cometidos e a importância de saber posicioná-los nos seus devidos lugares dentro da história.
Filhos de Nazistas é um potente retrato da ascensão e queda de um dos regimes mais cruéis e totalitários de todos os tempos. Delineando a vergonha, a superação, a miséria ou mesmo o isolamento dos filhos da elite dos altos funcionários do nazismo, Tania Crasnianski enriquece o robusto arquivo mundial sobre o regime nacional-socialista alemão e traz fontes inéditas ao leitores brasileiros. Uma leitura necessária numa contemporaneidade que vê renascer e recrudescer discursos perversos que já julgávamos adormecidos e esquecidos.
FILHOS DE NAZISTAS | Tania Crasnianski
Editora: Vestígio;
Tradução: Fernando Scheibe;
Tamanho: 240 págs.;
Lançamento: Janeiro, 2018.