O enredo desse clássico da literatura mundial, que inspirou o livro e o filme As Horas, é bem conhecido: Uma mulher de meia idade sai de casa para comprar flores, pois logo mais à noite haverá uma recepção em sua casa para algumas personalidades da alta sociedade inglesa. Ao longo do dia ela cuida dos preparativos da festa, recebe uma visita inesperada, conversa com algumas pessoas e relembra fatos do passado. E é só isso, certo? Errado. Virginia Woolf parte de uma suposta banalidade cotidiana para mergulhar nos meandros da mente de seus personagens e a partir disso, a autora traça uma profunda reflexão sobre a condição humana. E, olha, que condição de merda essa nossa, viu.
Através de inúmeros fluxos de consciência, acompanhamos, em Mrs. Dalloway, todas as angústias e fraquezas de cada personagem que passa direta ou indiretamente pela vida de Clarissa Dalloway. E todos eles sofrem, sofrem muito, ora porque percebem que os anos avançaram sem que tivessem feito algo de relevante de suas vidas, ora porque simplesmente não conseguem dizer aquilo que pensam ou sentem. São pessoas frustradas por jamais terem se tornado aquilo que julgavam ser em sua essência e essa contradição fica evidente quando percebemos que, em alguns momentos, temos o personagem pensando uma coisa para logo em seguida dizer ou fazer outra completamente diferente.
Se o enredo chega a parecer simples, o mesmo não pode ser dito da linguagem. Veja só, no filme Possuídos (1998), Denzel Washington interpreta um detetive que enfrenta o espírito de um assassino que vai passando de pessoa para pessoa apenas com um toque no corpo. Há uma cena numa calçada lotada de gente em que o espírito incorpora diversos pedestres que estão passando e o diálogo vai sendo composto por diferentes pessoas que vem e vão. Virginia Woolf faz algo um pouco parecido em Mrs. Dalloway, mas só que de maneira genial e sem a parte demoníaca; o que ocorre é que do nada, de um parágrafo para outro, o foco narrativo passa de um personagem para outro que estava passando ali perto, do outro lado da rua. Então num momento estamos lá dentro da cabeça da dona de casa lamentando sua infelicidade e logo em seguida vamos parar na mente de um homem que voltou da guerra e agora tem pensamentos suicidas, depois vamos para cabeça da esposa desse cara, para a do homem que passou perto desse casal, etc. Em alguns momentos temos a mesma cena observada a partir de pontos de vista diferentes, algo bastante comum no cinema, mas não tanto na literatura da época.
O que Virginia Woolf fez foi tocar o foda-se para as convenções e arriscar, assim como fez Faulkner, uma maneira diferente de se contar uma história.
A escritora quebrou padrões clássicos de narrativa e toda a história da crítica literária está aí para explicar isso direitinho, mas para sermos breves, o que Virginia Woolf fez foi tocar o foda-se para as convenções e arriscar, assim como fez Faulkner, uma maneira diferente de se contar uma história. Se pra gente, em 2015, isso já soa meio revolucionário, imagina quando o livro foi escrito, em 1925? O recurso narrativo pode causar estranheza, pois em diversos momentos o leitor (principalmente aqueles mais lerdos, como eu) fica sem ter certeza de quem está falando e muito menos se aquilo está acontecendo no momento ou se é apenas uma lembrança, e aí precisará reler alguns trechos. E o que poderia ser encarado como um problema, acaba funcionando como um estímulo intelectual e um aprofundamento das questões que o livro discute, pois num certo momento a personagem afirma que ela é também os lugares por onde passa, as pessoas que encontra, enfim, ela acredita que existe algum tipo de ligação, que todos nós somos compostos por tudo o que está ao nosso redor e aquilo que por ventura nos é ausente, segue vivo no outro.
A cidade de Londres acaba funcionando praticamente como um personagem, responsável por estabelecer as conexões entre os personagens que flanam pra lá e pra cá. Na edição que li, lançada este ano pela editora Nova Fronteira, com tradução de Mario Quintana, há inclusive um mapa da época (viu? não é só Senhor dos Anéis e Game of Thrones que usam esse recurso), mostrando o centro da cidade.
Toda as reflexões dos personagens são marcadas por certa noção de urgência, cadenciada pelas badaladas do Big Ben. É interessante como o famoso relógio funciona como uma representação muito maior do que a mera demarcação de horas, pois aparentemente ele corresponde ao anúncio de um presente que está se esfarelando diante dos personagens e também como a perspectiva de um futuro sombrio, em que haverá cada vez menos tempo para alcançar algum tipo de felicidade ou simplesmente satisfação em se sentir vivo.
Um dia na vida de Mrs. Dalloway representa a vida toda, a dela e a nossa.
MRS. DALLOWAY | Virginia Woolf
Editora: Penguin;
Tradução: Claudio Alves Marcondes;
Tamanho: 328 págs.;
Lançamento: Setembro, 2017 (atual edição).
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