Quando o taxista Rodney King foi brutalmente espancado por policiais no início dos anos 90, a reação massiva da população que incendiou as ruas de Los Angeles ao longo dos três dias de julgamento, remetendo à luta pelos direitos civis nos anos 60, só ocorreu porque o crime havia sido filmado, caso contrário, provavelmente o caso nem mesmo teria sido levado ao tribunal.
As imagens são impactantes: um homem negro no chão. Ele está rendido e desarmado. Mesmo assim, 4 policiais brancos o espancam ao longo de 2 minutos com cassetetes até quase matá-lo, enquanto vários outros policiais apenas observam. A acusação foi a de que ele havia excedido o limite de velocidade.
Depois, um júri composto majoritariamente por pessoas brancas julgou o crime racial cometido contra um negro.
Dois policiais foram absolvidos. Mesmo com a repercussão mundial. Mesmo com as imagens.
Corta pra 2017.
De 3 março de 1991 (dia em Rodney foi espancado) até o ano passado (quando este livro foi publicado), dezenas de casos semelhantes foram registrados. Praticamente todos eles começaram com uma abordagem policial simples e terminou com o assassinato de uma pessoa indefesa. Freddie Gray, Walter Scott, Anthony Hill, John Crawford, Michael Brown… os nomes vão sendo tragicamente enfileirados.
No excelente O Ódio que Você Semeia, a estreante Angie Thomas, que nasceu e mora no Mississippi, explora o impacto que um crime como esse causa não só na família das vítimas, mas também na sociedade como um todo.
No excelente O Ódio que Você Semeia, a estreante Angie Thomas, que nasceu e mora no Mississippi, explora o impacto que um crime como esse causa não só na família das vítimas, mas também na sociedade como um todo. O romance conta a história de Starr, uma adolescente negra da periferia que estuda num colégio praticamente só de brancos, numa região mais abastada. Seu pai, um ex-integrante de uma gangue violenta do bairro, saiu da cadeia e agora toca o seu próprio negócio. Tudo vai relativamente bem até o dia em que, ao sair de uma festa, a garota testemunha o assassinato de um amigo de infância durante uma abordagem policial.
O livro tem a tessitura de literatura juvenil (inclusive é catalogado como tal) presente na estrutura ágil da narrativa e na linguagem mais direta. Porém, isso não é, de modo algum, sinônimo de que o romance pegue leve no tema ou que seja apenas voltado para o entretenimento, longe disso.
O Ódio que Você Semeia dialoga com os adolescentes, mas não só toca em diversas feridas a respeito da tensão racial nos EUA, como também aponta para reflexões a respeito de tema que fogem do padrão comumente encontrado na mídia, afinal a obra direciona um olhar para as vítimas com uma profundidade e uma sutileza que a imprensa sensacionalista jamais daria conta.
Diferentemente do caso de Rodney King, aqui o crime não foi filmado e há apenas uma garota negra como testemunha. É a palavra dela contra a de um policial branco. O interessante é que a autora emprega diversas nuances que fazem com que o enredo não resvale em maniqueísmos ou mesmo em mensagens meramente panfletárias. Veja bem, há um discurso contra racismo e violência policial e ele é poderoso, mas funciona a favor da narrativa, como um elemento importantíssimo dela e não como um penduricalho no meio da história, como se a autora fizesse pausas para mandar recados.
Angie Thomas cria diálogos muito críveis, uma vez que demonstra habilidade em reproduzir o vocabulário daqueles jovens, se atentando não apenas às referências pop (como músicos, atletas e marcas), mas também à sonoridade do coloquialismo, mantendo a naturalidade da fala, da prosa etc (registre-se o mérito de Regiane Winarski, que conseguiu verter tudo isso para o português com muita precisão). A temática do livro é pesada, mas a escrita é leve, com espaço até para momentos mais divertidos, afinal, a autora está falando de/com garotos e garotas. Esse esmero, somado à sensibilidade com que ela desenvolve aqueles personagens, resulta em elementos muito consistentes e importantes para a imersão do leitor, que dificilmente não sentirá falta daquelas pessoas ao término da leitura.
O Ódio que Você Semeia trata de temas antigos que permanecem atuais e universais. No dia em que escrevo este texto, leio a seguinte manchete publicada num portal de notícias: “Ordem da PM determina revista em pessoas ‘da cor parda e negra’ em bairro nobre de Campinas”.
Chega a ser desolador.
Uma obra como essa nos ajuda a pensar e a se indignar. Ela nos mostra que nem tudo são flores quando levantamos nossa voz contra as injustiças, mas que esse é um gesto fundamental para que nos tornemos seres humanos decentes.
Enfim, espero que muitos jovens e adultos tenham a oportunidade de se divertir e se emocionar com essa história e, principalmente, a oportunidade de ouvir o que Starr tem a nos dizer.
O ÓDIO QUE VOCÊ SEMEIA | Angie Thomas
Editora: Galera Record;
Tradução: Regiane Winarski;
Tamanho: 378 págs.;
Lançamento: Julho, 2017.