De tantos textos literários que têm como mote a tradução, um dos que considero mais divertidos e ao mesmo tempo reveladores vem de uma coletânea de Dezsö Kosztolányi (1885–1936), lançada em 1996 e relançada em 2016 pela Editora 34, intitulada O tradutor cleptomaníaco e outras histórias de Kornél Esti, em ótima tradução direta do húngaro por Ladslao Szabo. Faz parte da Coleção Leste, dirigida em seus primeiros títulos por Nelson Ascher e, depois, pelos próprios editores da 34, que traz pequenas joias do Leste Europeu, como Karel Čapek (de quem já escrevi aqui n’A Escotilha), István Örkény e Sigismund Krzyzanowski, nomes importantes da literatura europeia desconhecidos aqui no Brasil.
O conto que dá nome à coletânea é a história divertida de um escritor cleptomaníaco que, ao traduzir, afana diversas coisas do texto original, levando consigo o que o texto tinha de aparentemente supérfluo e deixando apenas sua essência, o mínimo para que os personagens continuem a viver. Nesse conto, ele já mostra, em um trecho, como o poeta duplamente boêmio e bem-humorado Kornél Esti, de certa forma o alterego de Kosztolányi, foi criado para falar certas verdades sobre a vida:
“Aquele que conhecemos geralmente é cleptmaníaco. Aquele que não conhecemos geralmente é ladrão. O tribunal não o conhecia; assim foi qualificado – ladrão, e condenado a dois anos de prisão.”
Na mesa do bar
Todo mundo gosta de uma filosofia de botequim, um papo regado a cerveja, aos fumantes um cigarrinho para acompanhar. Nesse cenário, sempre surgem as histórias mais insólitas e engraçadas, e ao lado de uma figura como Kornél Esti não podia ser diferente. Os treze contos que compõem O tradutor cleptomaníaco em geral têm como pano de fundo um café húngaro da virada do século, já meia-noite passada, com fumaça e conhaque rolando soltos, e a estrela da noite é Esti, um contador de histórias inveterado.
Um pouco da falta que às vezes sinto de histórias bem contadas na literatura contemporânea é suprido por narradores deliciosos como Kosztolányi, que, mesmo com a distância de 80 anos de sua morte (ou seja, quase 100 anos de seus escritos) são de uma atualidade impressionante. Os contos da coletânea são ágeis e sarcásticos, mas também podem ser trágicos e tristes, tocam em feridas, defeitos e problemas humanos, mas sem perder a leveza da história de boteco. Por mais que a linguagem seja da virada do século, as mazelas, desconcertos e ironias que Kosztolányi traz à tona são universais, e por isso os textos são tão atraentes.
Por mais que a linguagem seja da virada do século, as mazelas, desconcertos e ironias que Kosztolányi traz à tona são universais.
Quando travamos contato com Kornél, já sabemos que ele seria hoje chamado de o sincerão, pois não tem papas na língua, vai disparando sua metralhadora sarrista em quem for, até em si próprio. Nos contos, deparamos com várias figuras engraçadas, como um homem de proporções avantajadas que simplesmente desaparece e causa comoção de seus amigos e parentes, trazendo reflexões 99% filosóficas, mas sempre com aquele 1% de ironia.
O próprio Kornél se mete em algumas confusões, como quando encontra uma escritora péssima que lhe pede para avaliar seu último e enfadonho romance, quando recebe uma herança e precisa distribui-la a qualquer custo (uma comédia de erros) e quando formula a ideia de que quanto mais inacreditável for uma mentira, mais ela vai ser crível. O conto mais longo da coletânea, “O presidente”, é uma ode ao sono, um tema hoje extremamente moderno, em tempos nos quais se dorme cada vez menos (sobre essa questão, outro texto aqui), e também quase uma profecia do papel dos alemães nos destinos do mundo poucos anos após a morte do autor.
O boêmio escritor criado por Kosztolányi fala de chapéus, de misérias – e mimimis – de paternidade e bom-mocismo; se vivo, o autor se divertiria imensamente com a sociedade de hoje, Kornél Esti seria um troll de carteirinha, provavelmente teria uma página do Facebook onde distribuiria memes irônicos muito originais.
Engraçado, mas tocante também
Um dos contos que mais gosto na coletânea, além de “O tradutor cleptomaníaco”, é “O fim do mundo”, em que Kornél comenta com o próprio autor (que às vezes é personagem também durante o livro) que sonha constantemente com o fim do mundo. Às vezes, o fim do mundo é repentino, em outras é lento e moroso, em muitas de uma nitidez assustadora, daquelas que fazem a gente acordar aos pulos. Nesse conto, o narrador apresenta ao autor o sonho de “fim do mundo” que tivera na noite anterior, sempre regado a muito sarcasmo, mas a mensagem final traz uma reflexão antiga, mas sempre boa de se lembrar:
“… só aquele que está totalmente preparado para a morte é que pode viver, e nós, tolos, morremos, porque só nos preparamos para a vida, e queremos viver a qualquer custo.”
Ou seja, por mais que os contos sempre tenham passagens divertidas, as entrelinhas nos contam muito mais sobre esses personagens que, de tão insólitos, passam a ser muito reais.
Um dos critérios que uso para considerar uma história boa ou não é a verossimilhança, como já devo ter comentado por aqui em algum lugar. E uma coisa de Kosztolányi fez muito bem foi dar a seu alterego uma personalidade forte e verossímil. Quando sentamos à mesa de Kornél Esti, parece mesmo que ele está soprando fumaça na nossa cara e rindo, imitando vozes, tomando seu vinho e encantando sua plateia. E dessa forma, o autor também tira um pouco das costas de uma literatura mais periférica o rótulo de “cabeçuda” ou “intelectual”, afugentando assim o grande público.
Então, quando vir o impronunciável nome Deszö Kosztolányi em uma estante de livraria, dê uma chance ao húngaro, que foi um dos maiores autores da literatura magiar, e a seu alterergo. Prometo que não vai se arrepender.
O TRADUTOR CLEPTOMANÍACO | Deszö Kosztolányi
Editora: 34;
Tradutor: Ladislao Szabo;
Tamanho: 136 págs.;
Relançamento: Março, 2016.