Na segunda-feira desta semana, alcançamos os 200 anos completos desde o nascimento de Emily Brontë, escritora de língua inglesa de grande impacto no século 19 – e até hoje, na verdade. Especialmente conhecida pelo imortal Morro dos Ventos Uivantes, Emily era também uma poeta talentosa, como pode-se constatar com a leitura de O Vento da Noite.
Emily talvez não seja a única Brontë sobre quem você já tenha ouvido falar… As irmãs Brontë eram um trio de autoras, então você pode ter ouvido o nome de Anne ou de Charlotte em outro momento. Anne Brontë foi a autora de Agnes Grey e era a mais nova das três. Charlotte, por sua vez, tornou-se a mais famosa das irmãs e seu livro de maior reverberação foi Jane Eyre (você já viu o último filme?). Os romances das irmãs foram trabalhos individuais, mas as três juntas tiveram a sua primeira publicação juntas: um livro de poemas sob os pseudônimos de Currer, Ellis e Acton Bell.
Repare que as iniciais dos nomes são os mesmos que o de seus nomes verdadeiros. Repare mais um pouco e veja que os pseudônimos são nomes andróginos, o que nos lembra que estas mulheres eram autoras no século 19, um tempo em que ser mulher e ser escritora era ainda mais difícil. Os trabalhos das Brontë levam-nos para um outro mundo, um mundo de dois séculos atrás – só para vermos que muito ainda é o mesmo: o coração humano.
É uma obra valiosa, que percorreu um longo caminho para chegar ao nosso alcance.
Emily Brontë escreveu diversos poemas ao longo de sua curta vida (Emily morre aos 30 anos de tuberculose). Afora os poemas publicados com as irmãs como Ellis Bell, Emily não publicou nenhum outro em vida. Charlotte foi a primeira pessoa a resgatar seus poemas de anotações pessoais, organizá-los e publicá-los. No contexto brasileiro, contamos ainda hoje principalmente com o trabalho de seleção e tradução de Lúcio Cardoso para acessar a obra poética de Emily Brontë. É uma obra valiosa, que percorreu um longo caminho para chegar ao nosso alcance. A tradução de Lúcio Cardoso foi publicada pela primeira vez em 1944 pela José Olympio, intitulada O Vento da Noite, e esgotou-se. Em 2016, a Civilização Brasileira traz à tona essa tradução, em sua seleção de 33 poemas, em verão bilíngue. Com organização de Ésio Macedo Ribeiro, os poemas voltam a nos proporcionar o deleite de sua leitura.
“O Vento da Noite” é o título de um dos poemas de Emily Brontë, o poema escolhido por Lúcio Cardoso para funcionar como título da coletânea. Ésio Macedo Ribeiro avalia em seu texto que “embora seus poemas pertençam à escola romântica, marcada pelo lirismo, pela subjetividade, pela emoção e pelo eu, eles fogem em muito à pieguice e ao derramamento exacerbado característicos daquele movimento literário. Sobretudo pela concretude com que ela trata os mais diversos temas em O Vento da Noite, a exemplo da passagem do tempo, a noite, a solidão e a morte”.
Outro ponto atrativo é o reconhecimento das qualidades especiais da poesia de Emily Brontë, mesmo em comparação com a poesia de suas irmãs. Logo nas primeiras críticas ao livro de poemas de “Currer, Ellis e Acton Bell”, os poemas de “Ellis” eram destacados pela promessa que aquele poeta representava. Os poemas de O Vento da Noite mostram que a promessa se concretizou.
Para aqueles que conhecem o grande romance Morro dos Ventos Uivantes, há muito da mesma poesia quando comparamos o trabalho de prosa e os trabalhos de poesia. O gótico tão fortemente identificado está em ambos, como está uma perspectiva negativa ou sombria do mundo. Emily Brontë tem uma poesia visionária, capaz de partir do singelo para elevar a alma a outros patamares. Um poema de Emily Brontë traduzido por Lúcio Cardoso, uma amostra para os leitores, é incluído ao fim deste artigo. Aproveitem!
Minha alma não teme coisa alguma
Estes versos foram os últimos
que minha irmã Emily escreveu.
Charlotte Brontë
“Minha alma já não teme coisa alguma,
E a escura tempestade em que sem descanso o mundo
Gira,
Não mais a abalará:
Já vejo a glória dos Céus extasiantes,
E a fé que resplandece no fogo de sua armadura
Aniquila o medo no meu ser.
Ó Deus que eu trago dentro em mim,
Deus todo-poderoso, Presença universal!
És a Vida – em meu seio Tu repousas,
E minha eternidade encontra em Ti o seu poder!
Vejo a vaidade nas suas múltiplas nuances,
Onde o homem alimenta a força do seu coração:
E vejo esta vaidade e a sua impotência
Fanadas e mortas como a erva dos campos,
Como a espuma louca das vagas no oceano,
Tentando inutilmente reanimar a dúvida,
Quando a alma já está sã e salva,
Aprisionada para sempre a Teu Ser infinito,
Através de uma certeira âncora
Lançada ao rochedo imutável da vida eterna!
Teu sopro, com amor, abraça os espaços
E penetra com sua vida os séculos eternos,
Espalha-se como um rio e cobre o nosso mundo,
Mudando ou preservando as coisas,
Dispersando-as, criando-as, trazendo-as à vida.
E se viesse o fim deste mundo e o fim dos homens,
O fim dos universos, a ruína dos sóis,
Se apenas Tu ficasses,
Serias ao mesmo tempo todas as existências.
A Morte se esforça em vão para achar um espaço,
Mas seu poder não pode aniquilar um átomo sequer.
Tu és o Ser e o Sopro,
Nada poderia abolir as Tuas formas.”
O VENTO DA NOITE | Emily Brontë
Editora: Civilização Brasileira;
Tradução: Lúcio Cardoso;
Tamanho: 154 págs.;
Lançamento: Agosto, 2016.