Quando o imperador era divino (Grua Editora, 2015, tradução de Lilian Jenkino), livro de estreia de Julie Otsuka, é a narração da história de uma família norte-americana que sofre as consequências do conflito entre os Estados Unidos e o Japão, na Segunda Guerra Mundial. Numa noite de Natal, agentes do FBI batem à porta de uma casa e levam o pai da família, sem acusação formal ou explicação. É dezembro de 1941, pouco depois do ataque do Japão à base norte-americana de Pearl Harbor, no Havaí.
Em fevereiro de 1942, o presidente Franklin Roosevelt assinou a Ordem Executiva 9066, que estabeleceu áreas militares cercadas no interior do país para onde foram enviados aproximadamente 120 mil japoneses ou pessoas de ascendência nipônica, boa parte já cidadãos americanos. Foram dez campos estabelecidos na Costa Oeste – nos estados da Califórnia, Arizona, Colorado, Wyoming, Idaho, Utah e Arkansas – até 1948.
Cada capítulo do livro é protagonizado por um personagem. Começa com a mãe, preparando-se para deixar a casa em que vive com os dois filhos. A decisão de matar o cachorro revela a tragédia que se abateu sobre a família. Um dos grandes trunfos da autora é estabelecer um tom intimista para a narrativa. Como se em vez de uma narração em voz alta, ouvíssemos apenas murmúrios. O tom seco encaminha o drama para a linguagem poética. Como se o não-dito permeasse o que é escrito.
Pequenos detalhes pontuam a história. A gentileza dos policiais na viagem de trem para o deserto. A apresentação gradativa dos sinais de depressão da mãe. A culpa do menino na adaptação ao acampamento temporário numa pista para cavalos. A lembrança da casa no campo de prisioneiros em Utah, no meio do deserto. Embora bizarra, a repressão é naturalizada. O menino é instruído a nunca pronunciar o nome do imperador japonês.
“As regras eram simples em relação à cerca: não se podia passar por cima dela, não se podia passar por debaixo dela, não se podia dar a volta nela, não se podia passar através dela.
Mas e se sua pipa ficasse presa na cerca ?
Essa era fácil. Você deixava a pipa para trás.
Havia regras em relação ao vocabulário, também: Aqui dizemos Refeitório, não Salão; Conselho de Segurança, não Polícia Interna; Residentes, não Refugiados; e por último, mas não menos importante, diz- Clima Mental, não Moral.
Havia regras em relação à comida: nada de repetir, exceto quanto ao leite e ao pão.
E também aos livros: nada de livros em japonês.
Havia regras em relação à religião: não se permitia xintoístas adoradores do imperador.”
Quando a família volta para casa, depois de três anos, tudo também tem que parecer normal. A casa foi depredada e saqueada, os vizinhos os evitam. A mãe é recusada em todos os empregos e é forçada a trabalhar como faxineira. Quando o pai volta, é um homem velho e arrasado. É magistral o modo como a autora capta o espírito de resignação, débito da herança cultural japonesa, como explica o escritor Jun Ichiro Tanizaki, no ensaio Em louvor à sombra. Esta herança repressiva é amplificada pelo massacre físico e psíquico imposto nos campos de concentração:
É magistral o modo como a autora capta o espírito de resignação, débito da herança cultural japonesa, como explica o escritor Jun Ichiro Tanizaki, no ensaio Em louvor à sombra.
“Quando fazíamos algo errado nunca deixávamos de dizer me perdoe (me perdoe por olhar para você, me perdoe por sentar aqui, me perdoe por ter voltado). Quando fazíamos algo terrivelmente errado imediatamente dizíamos que sentíamos muito (sinto muito por ter encostado em seu braço, não foi minha intenção, foi só um acidente, não vi que ele estava aí tão quieto, tão belo, tão perfeito, tão, tão irresistivelmente na beira da mesa, eu perdi o equilíbrio e encostei por engano, eu estava perto demais, não prestei atenção aonde estava indo, alguém me empurrou por trás, eu nunca quis encostar em você, eu sempre quis encostar em você, eu nunca mais vou tocar em você, eu prometo, eu juro).”
A repressão em dose dupla foi base para a construção do estereótipo da minoria modelo, surgido na década de 1960. A ameaça do “perigo amarelo” na 2ª Guerra Mundial foi substituída por imigrantes que incorporaram o sonho americano. Entre outras qualidades, a minoria modelo é uma minoria étnica louvável, economicamente ativa, politicamente inofensiva – e não-negra. Por causa da imposição do modelo, durante décadas os campos de concentração foram um tema tabu. Até hoje especialistas debatem qual o termo exato a ser usado para designar as colônias de prisioneiros políticos.
Durante a guerra, muitos norte-americanos descendentes de japoneses perderam todas as posses e economias. Estima-se que se perderam uns 400 milhões de dólares, e depois da guerra o governo devolveu US$ 40 milhões. O governo americano ofereceu compensações às vítimas a partir de 1951, mas desculpou-se somente em 1988. O Presidente Ronald Reagan assinou uma ata que oferecia 20 mil dólares às vítimas sobreviventes.
Julie Otsuka e nasceu em 1962, em Palo Alto, Califórnia. Graduou-se em Artes pela Universidade de Yale, em 1984 e Mestre em Artes, pela Universidade de Columbia, em 1999. A autora não viveu a experiência do aprisionamento nos campos de internamento, mas seus pais, sim. Julie venceu o Prêmio Pen/Faulkner de 2012 com o livro O Buda no sótão.
QUANDO O IMPERADOR ERA DIVINO | Julie Otsuka
Editora: Grua;
Tradução: Lilian Jenkino;
Tamanho: 144 págs.;
Lançamento: Novembro, 2015.