O que faz uma vida? Esta indagação insolúvel é pano de fundo do provocativo e comovente Saia da Frente do Meu Sol (editora Autêntica Contemporânea, 2023), livro do escritor e historiador carioca Felipe Charbel. Por meio de uma obra que transita entre diferentes gêneros, Charbel se dedica a uma investigação em torno de um tio com quem viveu e sobre quem sabe muito pouco – mas está disposto a saber mais por meio de uma visita a suas fotos, guardadas no fundo de um armário.
O tio Ricardo é reconhecido como uma figura comum e ordinária, e se parece com tantos parentes de todos nós: um sujeito sem família nuclear e que viveu nos cômodos de fundo das casas de irmãos e sobrinhos. Felipe Charbel abre seu livro com uma epígrafe, tirada de sua certidão de óbito, que resume a vida do tio: “não deixou filhos, não deixou bens, não era eleitor e faleceu sem testamento conhecido”.
A vida sem registro e sem heranças é uma vida menor? A resposta é um óbvio não, mas os sujeitos sem descendentes (seja por não terem gerado filhos, seja por não ter deixado um legado intelectual) parecem condenados a desaparecer sem deixar rastros. No belo Saia da Frente do Meu Sol, Charbel encarna a função de um antropólogo de uma vida apenas, e para descobrir mais sobre o seu objeto de estudo, ele utiliza de uma ferramenta metodológica tão popular quanto menosprezada: as fotos.
A vida eternizada pela fotografia
No belo Saia da Frente do Meu Sol, Charbel encarna a função de um antropólogo de uma vida apenas.
A obra, de difícil categorização, transita entre gêneros díspares, como o romance, o ensaio e a análise fotográfica, e entre campos, situando-se em um terreno movediço entre a ficção e a não ficção. Para tanto, se apoia em alguns cânones da antropologia visual, como John Berger, mas sobretudo no clássico A Câmara Clara, do semioticista Roland Barthes.
Neste ensaio definitivo sobre a fotografia, Barthes investiga, a partir de imagens familiares (como uma foto da própria mãe) e famosas, os sentidos complexos gerados pelo artifício técnico que registra o “fantasma” de alguém em um papel. O teórico francês constata então algo terrível: “há em toda fotografia: o retorno do morto”. Por sua característica material, a foto é sempre a eternização de algo que não está mais lá.
Mas Felipe Charbel percorre o caminho oposto: “O que vejo nas fotos não é o retorno do morto, mas o retorno do vivo”. A partir dos poucos registros guardados pelo tio Ricardo, ele se debruça sobre uma história possível: a de um homem que pode ter sido um “entulho humano”, mas também um malandro, um sonhador, um pícaro, um homossexual posto no armário pelas convenções sociais e assim restrito à figura do solteirão.
As imagens do tio Ricardo são também um testemunho de um tempo histórico, em que vemos pessoas divertindo-se, curtindo o Carnaval, exibindo os músculos na praia, ajeitando-se em posturas sérias ou engraçadas, vestindo-se com esmero ou de forma relaxada. Se os realistas acreditam que a fotografia é uma imagem sem código, como se representasse o real sem artifícios, visitar a imagem por mais de alguns segundos, contudo, é imaginá-la – e é essa a lição de Barthes que Felipe Charbel segue adiante.
Pois ao olhar a imagem do tio e pensar numa vida possível a ele, o escritor pensa sobre a vida de todos nós, conforme repete citando outro escritor francês, Pierre Michon: “falando dele é de mim que falo”. O universal está no singular, e na pequeneza da existência de um homem sem legado, esconde-se a beleza e a poesia de se ter a sorte de estar aqui.
SAIA DA FRENTE DO MEU SOL | Felipe Charbel
Editora: Autêntica Contemporânea;
Tamanho: 127 págs.;
Lançamento: Maio, 2023.
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