Quando se acha que consegue um pouco de paz, lá vem o mundo e dá uma rasteira daquelas tão fortes que jogam a pessoa no chão e o rosto dói até o dia seguinte. É como a sensação de “o mundo não vai me deixar em paz?”, mesmo quando se age com o máximo de cautela e educação até com quem não merece. É possível ter essa impressão ao ler Zadig ou O Destino (1747), conto de François Marie-Arouet, o velho Voltaire.
O protagonista Zadig era meio que um sábio da Babilônia, escolado nas chamadas “conversações” cheias de gracejos, incoerências e palavrórios; à instrução elevada que recebeu foram acrescentadas leituras valiosas, onde aprendeu que “o amor-próprio é um balão inflado de vento, de onde saem tempestades quando recebe uma alfinetada”, e “quando comer, dê de comer aos cães, mesmo que eles o mordam”.
Mas era mortal e humano, à nossa maneira. Prestes a se casar, Zadig defende sua candidata de um ataque na estrada, mas ela o troca após saber do risco de seu defensor ficar caolho graças a um ferimento da briga. Quase inconsolável, conseguiu se recompor após a decepção e buscou nova chance de casório, desta vez com uma burguesa em vez de uma caprichosa jovem da corte. A mudança fez bem: descobriu novos problemas.
Foi viver noutros cantos, esperançoso de ter algum sossego. Escreveu versos em homenagem ao rei, mas um belo acidente de interpretação o pôs em cana; auxiliou a encontrar animais perdidos da realeza, nada de grave tinha acontecido com eles – mas com Zadig sim, mesmo embasando seus argumentos com puras observações cotidianas sobre os animais, ainda se encrencou naquela sociedade.
Foi viver noutros cantos, esperançoso de ter algum sossego. Escreveu versos em homenagem ao rei, mas um belo acidente de interpretação o pôs em cana.
Com árduo esforço, nosso protagonista conseguiu uma posição boa na corte e, mais do que sua bagagem, seus atos o deram uma reputação de conciliador, visto que conseguia resolver situações sem que os envolvidos usassem espadas. E conseguiu atrair quase tantos olhares ruins quanto bons para si, óbvio. Mas nada como a paixão por Astartéia, finalmente uma mulher que não o abandonou durante um problema de saúde, tampouco o decepcionou ostentando virtudes falsas. Nosso sábio protagonista se rendeu aos sentimentos e isso o fez bem. Claro, só teve de cuidar para não ser rendido antes, afinal Astartéia era casada com o rei… o Zadig parece ter um imã de confusão grudado na cabeça e só ele não percebe. Mas dessa vez dá certo para ele, após uma epopeia particular que o força a cruzar o mundo.
Zadig ou O Destino faz par com Cândido ou O Otimismo (1759), obra mais conhecida de Voltaire, por compartilhar de sua ironia e de algumas voltas do carrossel de tragédias desta. Não chega no tom satírico e às vezes perverso de Cândido, onde os personagens parecem disputar quem sofreu mais enquanto acompanhamos o ritmo veloz da história; o ritmo de Zadig é menos imediato e tende mais à reflexão, de carona com os questionamentos infinitos do protagonista. Um leitor ou leitora extremamente carrasco pode questionar porque Zadig sofre tanto se é tão sábio e virtuoso quando apresentado no começo do conto, afinal este é um dos temas abordados por aqui. O nosso protagonista responde, durante uma cena tão fantástica quanto bela: “Desconfio de mim”.
ZADIG OU O DESTINO | Voltaire
Editora: L±
Tradução: Paulo Neves;
Tamanho: 92 págs.;
Lançamento: Fevereiro, 2014.