“O mundo inteiro é um palco”, e nós somos meros atores e atrizes de uma encenação dirigida por William Shakespeare. Escondido atrás das cortinas, o dramaturgo brincava com os personagens de suas peças. Podemos aproveitar esse legado graças às inúmeras versões e adaptações de suas obras; ele até poderia se gabar disso e falar com as palavras de suas peças, que criam um idioma muito próprio.
É como se ao mesmo tempo em que nos apresenta situações, personagens e os pensamentos destes, Shakespeare não perdesse a chance de zombá-las, as confundir com fantasmagorias (ou apenas a migalha de lucidez de uma disfarçada no espírito de alguém ausente do palco terreno), desmontar qualquer coisa que elas imaginem ter construído – um cargo, uma relação, um laço -, construir um passado e o contrapor diretamente com uma frivolidade, um evento sem grande importância, mas nunca imaginado pelo personagem em cima do palco.
Vai que no meio de uma eternidade à outra William Shakespeare resolve brincar um pouco, escolhe uns personagens a esmo e alguns de nós ainda mais a esmo, sai de trás das cortinas de seu palco etéreo e nos dá um papel. Tontos, poderíamos nos perguntar de que buraco saiu um louco achando ser o velho bardo; ele responderia nos apontando o palco, vamos vamos, ensaiem, você pode interpretar Otelo, o imponente mouro de Veneza, aquela moça ali pode ser nossa Desdêmona, o sujeito que gostar de plantar treta pela internet serve de Iago. Atores confusos, falamos pouco e pedimos novas instruções, pelo menos pra saber qual é a loucura deste cara aí.
Às vezes, lendo um livro deste dramaturgo, é um pouco difícil saber quando um de seus personagens está falando algo importante ou quando está sendo ridicularizado pelo narrador dentro e fora das histórias.
Shakespeare nos entende mal, acha que queremos trocar de papéis ou de peça, apenas nos diz como quiserem e nos aponta uma pilha de livros. Chegamos perto e, olhe que surpresa, é a obra do velho bardo. Rei Lear, Tempestade, Macbeth, Hamlet, temos completa liberdade para escolher qual peça encenar e quem vamos interpretar. O aspirante a Shakespeare ainda tira com a gente, “admirável mundo novo este que adentram, novas criaturas do palco!”. Admirável coisa nenhuma, porque a passagem do Tempestade onde tem uma frase parecida com essa é uma ironia e tanto, mas vamos lá, só pra acalmar esse louco.
Temos as obras sobre os reis, não, deixa pra lá, tem representação de jogo de poder demais na nossa época. Hamlet… nada contra, mas o ser ou não ser cansou, tanta gente repetiu isso sabendo da fonte ou não que ficou chato, pula. Sonho de Uma Noite de Verão, também não, muito complexa e meio alucinógena, combina com esse fantasma do Shakespeare que saiu do além e veio nos visitar, mas não pode ser ele. Olhe pra trás um pouco, o fantasma não está nos encarando nem nada. É uma deixa.
Podemos falar que não sabemos qual escolher, temos compromissos fora daquele palco, ele precisará de outras pessoas e tudo o mais. A coisa shakesperiana põe a mão nas nossas testas, diz que pelo formigamento dos dedos sente algo macabro vindo aí. Às vezes, lendo um livro deste dramaturgo, é um pouco difícil saber quando um de seus personagens está falando algo importante ou quando está sendo ridicularizado pelo narrador dentro e fora das histórias. É a mesma coisa ouvindo essa frase da espectral companhia que se diz Shakespeare. Insistimos, o fantasma começa a falar em um tom pomposo que o mundo é um lugar cheio de som e fúria, precisa do teatro dele, e que ficará desse jeito se recusarmos o convite para atuar em suas peças. Você e eu nos olhamos, cúmplices, e a frase estampada na cara: “vamos cair fora”.
Nos afastamos um pouco enquanto o fantasma continua recitando as falas dos livros, apressando o passo até Shakespeare não nos ver mais. O passo apressado vira uma corrida, temos que sair desse palco antes que a figura vire loucura e fúria. Mais rápido, venha! A gente vai por aquela porta ali na frente, depois vê onde ela dá. O importante é a assombração não encher a paciência. Entramos pela porta, o fantasma ficou lá trás.
Nós não. À nossa frente, temos um camarim, cortinas, um grupo enorme de pessoas, dúzias de figurinos e um sujeito com papéis nas mãos, talvez anotações de última hora. Ele ainda quer saber quais personagens dele, o próprio Shakespeare dirigindo a todos, nós vamos interpretar. A vida continua um palco.