A morte de Eduardo Galeano, em 2015, deixou um vazio que ainda não foi preenchido por nenhum outro intelectual. Sua obra máxima, As Veias Abertas da América Latina, publicada pela primeira em 1971, continua a valer, talvez, não por seus dados quantitativos – frutos de uma extensa pesquisa do autor –, mas sim em sua essência: a dominação dos Estados Unidos, e também de algumas nações da Europa, nos países latino-americanos.
A ascensão de Trump à Casa Branca, um sinal dos tempos em relação ao renascimento de uma direita predatória e extremista, fornece munição para uma argumentação que completa em 2018 47 anos. Como explica no prefácio da edição mais recente, de 2010, Galeano “lamenta que o livro não tenha perdido a atualidade”. Se testemunhasse o que vimos nos últimos três anos, ficaria estarrecido. Como explica o escritor, o modus operandi da América Latina segue ainda o modelo deixado pelos colonizadores que, mais que descobrir um novo mundo, estavam à procura de uma exploração – humana e mercantil – fácil e pouco complexa.
Os movimentos de esquerda que, após 2000 e apoiados legitimamente pelo voto popular, assumiram governos na América Latina, voltaram a ser solapados pelo imperialismo dos Estados Unidos e dos mercados comuns. Os golpes militares que assolaram países como o Brasil (1964 – 1985), Chile (1973 – 1990) e Argentina (1966 – 1973) voltam a ser enaltecidos – como no caso de Jair Bolsonaro que “homenageou” Brilhante Ustra durante a votação que cassou o mandato presidencial de Dilma Rousseff – como uma solução imediatista e radical à corrupção.
Como bem relembra Galeano, os Estados Unidos foram responsáveis por fomentar e alicerçar a chegada dos militares ao poder. Os interesses na década de 1960 não eram muito distintos dos atuais: petróleo e outros recursos naturais, controle das atividades financeiras, aliciamento de mão de obra barata – que hoje vemos retratada nas reformas trabalhista e da Previdência – e a manutenção de empréstimos realizados pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e pelo Banco Internacional de Desenvolvimento (BID).
Como bem relembra Galeano, os Estados Unidos foram responsáveis por fomentar e alicerçar a chegada dos militares ao poder.
O Haiti, que desde 2010 sofre para se reerguer depois de um fortíssimo terremoto, possui uma dívida com o BID que chega a US$ 441 milhões e outros US$ 6 milhões em moeda local, como afirma o próprio banco. Pois bem, desde os anos 60 o órgão vem aplicando medidas de auxílio que têm escravizado o povo haitiano. Galeano, com sabedoria e discernimento, já previa essa dominação durante a escrita de As Veias Abertas da América Latina.
Desobediência civil
O livro, que se pretendia “somente” um grande ensaio sobre política econômica, acabou por se tornar um clássico da cultura latino-americana. O discurso, longe de panfletário, mas nitidamente em prol de uma revolução (pacífica) da esquerda, serviu como base para a chamada desobediência civil, conceito amplamente divulgado por Henry David Thoreau (1817 – 1862), que culminaria em mobilizações como as Diretas Já.
Ainda que no fim da vida renegasse seu texto, alegando não estar pronto naquele momento para discutir as questões, Eduardo Galeano foi um analista crítico e sagaz de seu continente, chegando a exilar-se na Espanha durante o governo militar uruguaio (1973 – 1985), onde escreveu a Trilogia do Fogo. “Não estou arrependido de tê-lo escrito, mas foi uma etapa que, para mim, está superada”, comentou em 2014 ao jornal El País.
Parte de sua descrença em relação ao livro vem também da falta de esperança por mudanças reais. “Em todo o mundo, experiências de partidos políticos de esquerda no poder às vezes deram certo, às vezes não, mas muitas vezes foram demolidas como castigo por estarem certas, o que deu margem a golpes de Estado, ditaduras militares e períodos prolongados de terror, com sacrifícios e crimes horrorosos cometidos em nome da paz social e do progresso”, afirmou mais adiante na mesma entrevista.
O fato é que, para o bem e para o mal, As Veias Abertas da América Latina não é uma fábula da raposa que se propõe a cuidar do galinheiro, e sim um retrato consciente de um esquema ainda vivo de dominação e repressão. 2018 promete ser um ano de tensão e medo, portanto, é preciso impedir que o alheamento se perpetue e, para isso, é fundamental que estejamos abertos – não pelas veias, mas pela consciência.
AS VEIAS ABERTAS DA AMÉRICA LATINA | Eduardo Galeano
Editora: L±
Tradução: Sergio Faraco;
Tamanho: 392 págs.;
Lançamento: Setembro, 2010 (atual edição).
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