Quando houve o grande hype de O filho eterno, cheguei até a comprar o livro, o pessoal aqui em casa leu e gostou, mas por algum motivo não me rendi ao burburinho e ao fato de ter ganhado tantos prêmios. Depois de um tempo, acabei lendo O espírito da prosa, uma espécie de autobiografia literária de Cristovão Tezza, e gostei muito da abordagem da própria obra em um livro curto, mas parrudo em sua proposta.
Eis que, no meu aniversário do ano passado, ganhei de uma grande amiga, uma tradutora chamada Beatriz (talvez, por acaso, o nome da protagonista), o livro A tradutora, o livro mais recente de Tezza. Quando comentei com algumas pessoas sobre o livro, quase todas foram unânimes: gostamos muito do Tezza, mas esse livro é uma bomba.
Não sou muito de me influenciar, pois sou bastante eclético com minhas leituras, gosto muito da chamada “literatura de entretenimento“, me amarro em um clássico, sou fã dos russos, mas também de uma boa ficção científica. Por isso, quando mergulho em um livro, tento sempre extrair o melhor dele, do esforço do autor, que às vezes deu o seu melhor naquele momento para escrever um livro que, se comparado a outras obras do mesmo escritor, empalidecem. Como eu não tinha uma experiência prévia da obra do Tezza, entrei sem esperar nem muito, nem pouco. E a obra me surpreendeu. Nem sempre positivamente.
Em algumas situações, o livro é excelente, em outras decepcionante, mas quando alguém fala de uma realidade que é a nossa, sempre somos mais críticos.
Meu trabalho
Tem livros que mexem com a gente pelo fato de falar ao coração de várias maneiras. Em algumas situações, o livro é excelente, em outras decepcionante, mas quando alguém fala de uma realidade que é a nossa, sempre somos mais críticos. E no caso de A tradutora não foi diferente: fiquei à espreita das falhas e lacunas que deixassem a representação da nossa profissão menos crível e, nesse livro, infelizmente elas existem.
Mas também há muitas verdades.
Por exemplo, Beatriz é uma jornalista que acaba frilando e, entre seus trabalhos, está o de tradutora do espanhol ao português. Conheço muitas pessoas que acabaram na tradução por paixão, mesmo formadas em outras áreas, ou mesmo por necessidade ou a história do “a vida me trouxe até aqui”. E é isso que acontece com Beatriz. Que também é professora de idioma. E se vê intérprete da FIFA nas vésperas da Copa do Mundo de 2014.
Obviamente, esse é um pano de fundo criado pelo autor para que sua trama se desenrolasse, o que não é muito comum: uma tradutora editorial ser chamada para assumir uma interpretação, digamos, oficial. E outros pontos me fizeram duvidar da protagonista, e não apenas pontos relacionados à profissão. E isso pode significar a morte de um livro: quando o leitor põe a verossimilhança de um protagonista em dúvida.
Engraçado que, na minha opinião, o que dá um pouco de profundidade à Beatriz são as pessoas em seu entorno: a amiga Berenice, o namorado Donetti, o alemão Erik, o editor Chaves, até mesmo o autor que ela está traduzindo no momento em que conhecemos a personagem, Filip Xaveste, além do marido de uma amiga. Beatriz parece muito um autômato, sendo jogada de um lado para o outro ao sabor dos homens que aparecem à sua frente; no entanto, ela tem a ilusão (que fica muito clara em suas conversas com Berenice) de que está no comando.
E foi isso que me incomodou na personagem, pois, mesmo em seu íntimo, ela acha de verdade que está no comando da situação quase até o fim. E isso a deixou bastante rasa, na minha opinião.
A história em si é bastante simples, e sempre me encanta quem consegue tirar de uma história simples um bom romance (uma tradutora e professora de idiomas, atormentada por um namoro que está à beira do fim, é chamada para acompanhar um representante alemão da FIFA nas inspeções da Arena da Baixada, em Curitiba, antes da Copa do Mundo). E Tezza consegue isso. Mais em termos de linguagem, na minha opinião, do que em termos de criação dessa personagem.
Sobre o texto
Como disse antes, o livro também me surpreendeu positivamente no quesito linguagem. Há pouco, li outro livro brasileiro, inclusive premiado e aclamado, cujo tema também me atraía, e foi uma das maiores decepções do ano. Muitos autores brasileiros estão com dificuldade de contar histórias, mas são excelentes em experimentações de linguagem e também com a linguagem poética. Diferente, por exemplo, de Michel Laub e seu interessantíssimo Tribunal de quinta-feira e também de A tradutora.
Tezza consegue contar uma história simples de uma maneira nada tradicional, e isso me fez prosseguir no livro, mesmo tendo perdido toda a fé em Beatriz como personagem. Claro, a colcha de retalhos de vozes criada pelo autor não é novidade na literatura, mas essa não é uma técnica fácil, a da polifonia. E fazer toda essa polifonia tendo como ponto de partida a protagonista dificulta ainda mais o trabalho. No início, claro, pode parecer um pouco confuso, mas logo a gente consegue ouvir essas vozes se entrecruzando sem se misturar.
Quando comentei sobre a leitura com algumas pessoas, elas me disseram que essa é uma técnica já usada por Tezza em outros livros, e que chega à maestria em O professor. Boa oportunidade de buscar mais de Tezza para tentar tirar esse travo amargo de uma protagonista que não convence muito.
Idioma é coisa séria
Obviamente, pelo tema, os idiomas são muito presentes no texto. Afinal, a protagonista trabalha com espanhol, inglês e tem lá seus rudimentos do alemão (como o romance se passa em Curitiba, até aí, nenhum problema). O problema foi exatamente com o idioma de Goethe (e do 7×1): em dois momentos, um sem tanta importância e outro importante, há erros no alemão.
Claro que a maioria dos leitores vai passar batido por isso, mas sabe a lei de Murphy? Quando você acha que ninguém vai ver uma coisa e alguém está ali, de olho? Pois bem, meninos, eu vi. Na página 139, Beatriz fala em Hinterheil (cura traseira) quando na verdade queria dizer Hinterteil (parte traseira) para se referir à alcatra. E, na página 199, quando Erik pergunta Warum ich nicht aufwachen?. Se fôssemos traduzir seria “Por que eu não acordar?”. Seria esse Erik mais indígena do que pensávamos?
Parece uma besteira, um pedantismo, mas tudo isso faz parte da tal verossimilhança.
Se vai criar um personagem estrangeiro, precisa de alguém para dar aquela força, ao menos nas expressões idiomáticas e nas pequenas frases. Se vai montar um brasileiro que não é de sua região, de seu estado, tem que estar a par das gírias e do ritmo que aquele dá à sua fala.
Não dá para simplesmente pensar que ninguém vá ligar, que ninguém vá notar.
No cômputo geral
Talvez tenha sido a melhor coisa para mim começar por A tradutora, na opinião de muitos um livro que destoa do restante da obra de Cristovão Tezza. Assim, quando eu pegar os outros livros do autor, seja o mais famoso, sejam os outros que vieram na sequência em reedições ou lançamentos, devo virar fã, como são muitas das pessoas que não curtiram A tradutora.
A obra tem suas qualidades, apresenta um pano de fundo filosófico (por meio dos trechos da obra que é traduzida dentro do livro e fazem a protagonista refletir) e expõe um tanto de nossa intelectualidade frágil e egoica. Também retrata um momento importante do país, as manifestações de 2013, a popularidade da ex-presidenta, o embate com a FIFA, a visão que o estrangeiro tem de nossa cultura. Tezza usa de recursos sofisticados de linguagem para criar a trama do livro, mas esses recursos se veem um pouco perdidos na superficialidade de Beatriz. Infelizmente.
A TRADUTORA | Cristóvão Tezza
Editora: Record;
Tamanho: 208 págs.;
Lançamento: Setembro, 2016.