Na busca por si mesma, uma mulher descobre que uma cidade, além de tumulto e concreto, é também feita de gente desaparecida. Aqueles que sumiram e aqueles que procuram misturam-se nas vielas e praças compondo uma a paisagem urbana feita de abandono e esquecimento.
Tal qual a Alice de Lewis Carroll, a Alice de Quarenta Dias, publicado pela editora Alfaguara, cai em um buraco que a leva para outro mundo, só que este não é tão fantástico assim. A senhora já na casa dos 60 anos, que mora em João Pessoa, se vê coagida pela própria filha (uma lazarenta, diga-se) a abandonar a sua vida e ir para o Rio Grande do Sul, para cumprir aquilo que sua família entende, com um pé bem firme no conservadorismo, como algo básico e natural: ser avó (sinônimo de babá, é claro). Afinal, uma pessoa que já viveu tanto tempo pode muito bem abrir mão de tudo que construiu até ali para cumprir o papel que a sociedade espera dela, certo?
O livro de Maria Valéria Rezende, vencedor do prêmio Jabuti de 2015, desbancando merecidamente aquela chatice que é o livro do Chico Buarque, é todo narrado em forma de diário. Na verdade não é bem um diário, é um caderno com capa da Barbie (a qual acaba por virar sua improvável interlocutora), no qual ela despeja toda a sua angústia diante de tudo o que lhe aconteceu durante os quarenta dias em que surtou e resolveu enveredar pelas periferias gaúchas em busca de Cícero Araújo, um sujeito que foi para lá para trabalhar na construção civil. Ela nem sabe quem ele é, mas resolve procurá-lo a pedido de uma amiga de sua cidade natal.
O livro de Maria Valéria Rezende, vencedor do prêmio Jabuti de 2015, é todo narrado em forma de diário.
No fundo, essa busca é uma forma de abandonar a sua própria realidade para mergulhar em outra, e a personagem tem consciência disso: “Quem me visse pensaria que eu sabia exatamente pra onde ir e tinha pressa. Na verdade, eu não tinha pressa nenhuma, estava prologando a qualquer pretexto e quase desfrutando aquela nova espécie de liberdade, o anonimato sem destino, uma andança sem pé nem cabeça, cada vez mais movida a pura ficção que, àquela hora, já ia longe do motivo aparentemente real.”
Embora haja várias pausas meio forçadas, no estilo folhetim, tentando impor ganchos para o capítulo seguinte, o livro segue um bom ritmo. Como a autora realmente passou dias e noites na rua, para conhecer este universo tão próximo, mas ao mesmo tempo tão distante, as descrições e os personagens que surgem são muito convincentes. De fato, Maria Valéria Rezende consegue traçar um painel interessante da periferia, voltando o seu olhar menos para a miséria e a violência, como estaríamos acostumados, e muito mais para as pessoas, os indivíduos que ali estão.
Num geral, o livro é muito bom, não ganhou o prêmio à toa, mas duas coisas são um tanto incômodas: a artificialidade da relação entre a narradora e a Barbie (ou nós, os leitores), principalmente no início de Quarenta Dias. Ok, a personagem não é uma escritora, mas mesmo assim é um recurso de criar mistério, é muito manjado e acaba por forçar uma expectativa do que o que vem pela frente é muito brutal, só que na verdade isso jamais se concretiza. Coisas ruins acontecem, é claro, mas a narradora nos faz crer que seria muito, muito pior, então é bem difícil não se decepcionar.
Outra coisa é a repetição no enredo. Não cheguei a contar, mas creio que se repetem mais de dez vezes as situações em que a personagem se aproxima de algum estranho, conta a história de Cícero e esse alguém prontamente tenta ajudar. É bacana porque mostra um lado bonito das pessoas imersas numa realidade em que a violência e a desesperança talvez não predominem como muitos imaginam. Por outro lado, o recurso começa a encher o saco por ser repetitivo e quase esbarrar na ingenuidade.
Contudo, a autora é hábil ao dar contornos psicológicos contraditórios à protagonista, que segue sempre caminhando, sem nunca ter certeza para onde vai ou quem sabe se volta: “Logo me doeu a saudade, querendo voltar para casa, minha verdadeira casa, que ali eu não tinha nenhuma, só um pouso temporário, eu habitante provisória de agora em diante, para sempre impermanente”. Quando, por exemplo, a protagonista se emociona ao ouvir alguém falando com o mesmo sotaque que o seu, sentindo-se pelo menos um pouco em casa através da linguagem, a autora mostra que tem a manha de tornar a narrativa muito poderosa. É difícil não se identificar com uma personagem tão deslocada e talvez resida aí os motivos que levaram o livro a ser tão festejado.
Enfim, sinceramente não sei se a obra é tão grandiosa como quer a crítica, uma vez que há problemas que parecem ter sido ignorados por muita gente, mas mesmo assim Maria Valéria Rezende merece todo o reconhecimento que vem recebendo, pois não é qualquer um que escreve um parágrafo como esse:
“Fiquei chateada de que me acreditasse igual a ela, sim, moradora de rua, pedinte, arrastando aquele carrinho enferrujado afanado da porta de um supermercado qualquer ou recuperado de um ferro-velho, empanturrado de sobejos do consumismo dos outros, de todo tipo, equilibrando milagrosamente uma montanha maior do que ela de latinhas de refrigerante e garrafas pet amassadas, folhas de papelão, montes de trapos escapando pelas aberturas da grade do carrinho, um vulto a mais dos muitos semelhantes que eu já tinha entrevisto por ali, como muitas das ruas, sem lhes conceder mais atenção do que a um banco de praça, uma lixeira, um orelhão inútil. A rua é cheia de coisas sem serventia, Barbie, do mesmo jeitinho que os quartos das meninas de hoje que você costuma frequentar, só que o preço é diferente.”
QUARENTA DIAS | Maria Valéria Rezende
Editora: Alfaguara;
Tamanho: 248 págs.;
Lançamento: Março, 2014.