Paulo Leminski (1944-1989), ao longo de sua breve vida, aprendeu muitas línguas. Polonês, pelo que consta, não sabia – o não conhecimento da língua não o impediu de traduzir, com grande beleza, um brevíssimo poema de Adam Mickiewicz (1798-1855), um dos maiores nomes do romantismo polonês: trata-se de “Polały się łzy me czyste, rzęsiste” (Choveram-me lágrimas limpas, ininterruptas).*
Passados 25 anos de sua morte, em 2014, Paulo Leminski ganha sua primeira antologia em língua polonesa: powróciło moje polskie serce/ meu coração de polaco voltou, uma edição bilíngue que também foi publicada no Brasil (Casa da Cultura Polônia Brasil, 2015). As traduções são, em sua maioria, de Piotr Kilanowski, embora lá também se possam encontrar traduções de Konrad Szcześniak.
Mas como é Leminski em polonês? No sentido exatamente oposto ao de Zbigniew Ziembiński (que perdeu um acento em terras brasileiras), o nosso Leminski, na língua de seus avós, teria acento? A resposta enigmática é: não tem acento. Nos dois sentidos da palavra.
Leminski, todos seus leitores sabem(os), brinca profundamente com a língua, criando poemas que, a um primeiro olhar, pareceriam “intraduzíveis”. E nada mais motivador para um bom tradutor do que, precisamente, a frase: “isto é intraduzível”. Nos 57 poemas constantes da segunda edição (já de 2015), temos traduzidos (bem traduzidos) poemas como:
“Não discuto
com o destino
o que pintar
eu assino”
“Z losem ja
nie dyskutuję
co zmaluje
podpisuję”
O poema português, naturalmente, é distinto da sua versão polonesa (por exemplo, perdemos a ambiguidade do “pintar”), mas a metáfora essencial do poema se mantém intacta.
Leminski, todos seus leitores sabem(os), brinca profundamente com a língua, criando poemas que, a um primeiro olhar, pareceriam ‘intraduzíveis’. E nada mais motivador para um bom tradutor do que, precisamente, a frase: ‘isto é intraduzível’.
O caso do poema “rio do mistério” é mais complicado e exigiu duas traduções: uma considerando o “rio” como verbo, outra como substantivo. Duas interpretações possíveis: a primeira, risonha; a segunda, trágica:
“rio do mistério
que seria de mim
se me levassem a sério?”
A primeira interpretação-tradução considera que o eu-lírico ri do mistério:
“śmieję się z misterium
co byłoby ze mnie
gdyby mnie brano na serio”
O poema em português nos fornece pistas que, parecem-me, apontam para esta interpretação. Veja-se, por exemplo, o quanto formas do verbo “rir” aparecem ao longo das três linhas: rio, mistério, seria, sério. Talvez o mais cômico seja que até mesmo na seriedade há risada…
A outra tradução-interpretação possível nos mostra o eu-lírico dirigindo-se ao “rio do mistério”, uma espécie de Estige ou Aqueronte que deveria correr na Curitiba de Leminski:
“rzeko misteriów
co byłoby ze mnie
gdyby mnie brano na serio”
A preciosa edição intercala fotos, poemas e, mistério dos mistérios, um poema inédito!
Estranhos os caminhos deste que, provavelmente, foi o mais original dos curitibanos: não sabendo polonês, traduziu do polonês. Traduzido para o polonês, um inédito ganha voz em uma língua que, quando o poema foi escrito, o poeta não sabia falar.
* No YouTube, pode-se ouvir, na voz de Ná Ozzetti, a interpretação musical baseada na tradução de Leminski