A primeira lembrança que tenho com David Bowie é em um hospital. Eu devia ter uns nove ou dez anos de idade e, por conta de um joelho quebrado, passava boas horas em corredores de paredes brancas aguardando consultas. Desde pequeno ouvir música foi uma das minhas atividades preferidas, então, nessas horas um tanto quanto agoniantes, era em arquivos MP3 baixados pelo meu irmão mais velho que eu depositava minha atenção em um player com capacidade para algumas faixas. Lembro que nesse MP3 player, por influência direta do meu irmão de gosto musical alternativo, Flaming Lips e Belle and Sebastian eram bandas que tocavam com frequência. No meio das canções havia uma “Rebel Rebel” que eu não conhecia. Lembro de a escutar enquanto estava no corredor do hospital e ser tomado por euforia. Ouvi no repeat por várias vezes, sem saber quem cantava aquela canção mas, mesmo assim, fã instantâneo.
Treze, quatorze anos depois. Pouco antes das 7h da manhã do dia 11 de janeiro de 2016. Estou no carro indo para o trabalho. Paro em um congestionamento e pego o celular pela primeira vez no dia para abrir alguma rede social. No Facebook, a primeira postagem é de uma amiga falando sobre David Bowie. Compartilhado no post dela, a mensagem da página oficial do artista anunciando sua morte. Sinto cada pedaço do meu corpo arrepiar. Abaixo o volume do rádio do carro e sigo o trajeto em silêncio, anestesiado, como se alguém próximo tivesse morrido.
Já fazem mais de dez dias que vivemos em um mundo sem David Bowie, e desde então pouco das músicas que escutei não foram dele. Na última semana abracei a trilogia de Berlim, redescobri Space Oddity e sorri enquanto ouvia “Absolute Begginers”. Talvez todas as homenagens já tenham sido feitas, mas não consegui falar sobre outro assunto essa semana. Bowie fez parte da minha vida, assim como a de muitas pessoas que conheço, e seu legado vai permanecer para sempre, contanto que continuemos escrevendo sobre ele. É nas palavras, afinal, que concedemos a imortalidade.
Bowie foi, e muito provavelmente será, o maior artista de todos os tempos. Artista como um todo. Na música talvez outros tenham um legado maior – embora não tanto -, mas ninguém até hoje fez da arte sua alma como ele fez. Ele foi mil músicos em um, como bem colocou o jornalista Álvaro Pereira Júnior ao dizer que “morreram David Bowie”. Foi andrógino antes da liberdade sexual, foi punk antes do punk existir, ajudou a derrubar o muro de Berlim, pensou no espaço enquanto ainda estávamos chegando lá, foi astro de cinema e ícone da moda. Foi vários personagens e foi o artista David Bowie por décadas sem fazer do gênio e humano David Robert Jones manchete. Foi o extraterrestre Bowie ao fazer da sua própria morte uma obra de arte e lançar dois dias antes de morrer um disco que era claramente uma carta de adeus que ninguém percebeu até ser tarde demais. Foi David Robert Jones ao pedir para ser cremado longe de casa, longe da família e longe do público, escondido, sem alarde.
Na música talvez outros tenham um legado maior – embora não tanto -, mas ninguém até hoje fez da arte sua alma como ele fez.
Com 25 discos lançados na carreira, é difícil encontrar nesta lista um trabalho irrelevante. Até em seus momentos de menor inspiração Bowie foi (muito) acima da média. É possível encontrar em cada um desses álbuns grandes canções em inúmeros estilos diferentes. Da memória que tenho de ouvir “Rebel Rebel” pela primeira vez até os dias atuais, em incontáveis vezes me deparei com uma música dele que ainda não tinha ouvido. Talvez hoje alguém esteja ouvindo David Bowie pela primeira vez. Talvez neste mesmo instante alguém que já o admira descobre uma canção nova e se reinventa junto dele. Antes eu era Diamond Dogs (1974), hoje me reconheço mais em Hunky Dory (1971), mas já passei por Heroes (1977) e, quem sabe, como é o ciclo da vida, um dia chegue em Blackstar (2016). É assim com as lendas, elas persistem e estarão lá sempre para tocar a vida de alguém. Bowie já era uma lenda antes de morrer, hoje é constelação, daquelas que brilham na noite mais escura.