A primeira parte da década de 1990 entregou ao mundo alguns dos mais tristes e pesados discos que a humanidade já conheceu. Havia um clima pesado de desesperança e de niilismo, que se refletia na estética (na moda, por exemplo, o heroin chic difundia um visual em que as modelos eram magérrimas e com aparência acabada, como se todas fossem viciadas em drogas pesadas) quanto na música (uma parte considerável dos artistas do grunge, por exemplo, cometeu suicídio ou morreu de overdose).
A melancolia circulava também no Reino Unido, de onde surge o gênero trip hop – uma fusão hipnótica do hip hop com a música eletrônica. É desse lugar que nascem músicos e bandas como Tricky, Morcheeba e Massive Attack. Mas ganha destaque aqui o Portishead, banda formada em Bristol, em 1991, pelo baterista e compositor Geoff Barrow, a vocalista e letrista Beth Gibbons e o guitarrista Adrian Utley. Barrow já havia trabalhado com Massive Attack e Tricky, Utley era músico de jazz e Bett Gibbons cantava em pubs.
Em 22 de agosto de 1994, o Portishead soltava ao mundo o disco Dummy, que rapidamente percorreria os continentes e se tornaria uma obra cult recheada de clássicos. Mesmo que a banda fosse avessa a aparições na mídia, em 2008, o álbum havia vendido quase 4 milhões de cópias no mundo todo. E todo esse sucesso não é por acaso, já que o tempo sedimentou Dummy como um registro que, mesmo 30 anos depois, segue produzindo os mesmos efeitos nos ouvintes.
‘Dummy’: um álbum de “fossa”
Os membros do Portishead deram poucas entrevistas ao longo de sua carreira. Mas, em uma delas, Geoff Barrow disse: “por meio do Portishead, procuro demonstrar que a música eletrônica pode ter alma”. Os anos 1990 foram também o tempo das raves e da popularização da música techno, frequentemente acusada de não ser música, por faltar o caráter humano a ela. Por isso, em sua primeira faixa, Dummy já chega quebrando esse suposto reducionismo com uma faixa lúgubre e tensa: “Mysterons” faz soar como se estivéssemos entrando em algum hotel chique e obscuro no qual viveremos experiências sobre as quais não fazemos ideia.
Já sentados confortavelmente em um sofá, com nossos drinques na mão, o mergulho se segue e a melancolia adentra com “Sour Times”, um dos 3 singles do disco, que ajudou a embalar fossas no mundo todo com versos como “Cause nobody loves me, it’s true / not like you do”.
Nada parece fora do lugar, nada sobra nessas faixas sucintas e competentes em que os samples e as batidas reproduzidas eletronicamente casam com a bateria, a guitarra, o teclado Hammond, instrumentos incomuns como o theremin e o cimbal, e a voz aveludada e suave de Beth Gibbons, que muitas vezes sussurra e parece emprestar toda a sua alma às faixas. Mesmo nas músicas em que as batidas “artificiais” são mais visíveis, como “It Could Be Sweet”, Gibbons parece nos inundar com seu sentimento.
Depois de faixas mais “animadas” (com muitas aspas) e dançantes, como “Wandering Stars” e “Numb” (o primeiro single do disco), Dummy mergulha de cabeça na melancolia com “Roads” – que, em minha opinião, é uma das músicas mais tristes já feitas. Difícil imaginar um fã da banda que não tenha sofrido ao som de versos como “How can it feel, this wrong / From this moment / How can it feel, this wrong”.
Nada parece fora do lugar, nada sobra nessas faixas sucintas e competentes em que os samples e as batidas reproduzidas eletronicamente casam com a bateria, a guitarra e o teclado Hammond.
A viagem vai chegando ao fim em seguida com “Pedestal” e “Biscuit”, faixas menos marcantes, mas que levam ao ápice final com “Glory Box”, que deve ter engordado muito os bolsos dos músicos ao vender direitos para publicidade, figurando desde propagandas de cerveja até campanhas para conscientização do suicídio.
A sedutora “Glory Box”, mundialmente famosa dos versos “Give me a reason to love you / give me reason to be a woman” (e que, segundo Beth Gibbons, muitas vezes foram erroneamente interpretados como uma evocação à submissão da mulher), contém samples da faixa “Ike’s Rap II”, de Isaac Hayes – o mesmo beat que depois iria parar em “Jorge da Capadócia”, dos Racionais MC’s.
Esta viagem de 50 minutos proporcionada por Dummy é complexa, pois ela se adequa tanto ao easy-listening de uma música de restaurante ou elevador, a uma trilha sonora para o sexo, mas também é capaz de nos levar aos mais sombrios espaços da alma. E aí talvez esteja a sua genialidade. Em certa declaração à imprensa, Geoff Barrow descreveu assim o Portishead: queríamos ser tão rudes como o hip-hop, tão musicais como Ennio Morricone e tão emocionais como Billie Holiday“. Ao fim da escuta de Dummy, essa descrição faz todo sentido.
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