Quem tem hábito de ouvir rap nota suas flutuações, mas talvez não dê tanta atenção às camadas que vão sendo incluídas rotineiramente. Quem ouve o gênero raramente fica com a impressão que o rap não é o mesmo desde a última vez que escutou qualquer coisa. Na real, é esta organicidade que confere ao ritmo uma contemporaneidade difícil de ser reproduzida em outros gêneros. E se você quer entender bem do que falo, o novo EP do curitibano Dow Raiz, As Profundezas de um Tempo Danger, é um ótimo ponto de partida.
Figura consagrada da cena local, Dow Raiz reaparece repaginado, acrescentando à sua estrada os elementos advindos da mudança para São Paulo. É inegável que a geografia está refletida nas oito faixas que compõem o novo registro. São Paulo não traz apenas influências sonoras ou a ampliação de convergências musicais com outros artistas e produtores. A capital paulista também insere suas idiossincrasias sociais e culturais no trabalho de Dow Raiz.
O olhar do rapper a determinados temas ganha outra dimensão diante de uma das maiores metrópoles mundiais. Suas rimas retratam, primeiro, um cenário social muito mais conturbado, e sob mais de uma ótica. São Paulo não é só uma selva de pedra carcomida e cruel, ela é um recorte do Brasil de Bolsonaro e do acirramento da crise econômica, ética e social que parece entranhada em nosso ethos. Dow Raiz olha para esse interior em busca da bondade escondida “no mais fundo do profundo”, sem, no entanto, fazer vista grossa às hipocrisias de quem “ama funk, mas odeia quem é favela”.
Suas rimas retratam, primeiro, um cenário social muito mais conturbado, e sob mais de uma ótica. São Paulo não é só uma selva de pedra carcomida e cruel, ela é um recorte do Brasil de Bolsonaro e do acirramento da crise econômica, ética e social que parece entranhada em nosso ethos.
Nem a sonoridade de As Profundezas de um Tempo Danger escapam à heterogeneidade do universo contemporâneo que o rapper curitibano retrata. Boom bap, trap e funk se unem a um sem número de vertentes da música brasileira. Concomitantemente, ele faz questão de evocar suas raízes do rap e da quebrada que “cantava sobre educação” e segue precisando de “clássicos pra mudar a vida de quem os ouvir”. Sabotage, RZO, Dina Di, entre outros, emprestam seus ensinamentos, mostrando o quanto o rap enquanto gênero é inclusivo e, principalmente, como não deixa de pulsar e soar contemporâneo – ou alguém arriscará dizer que Sobrevivendo no inferno não é essencialmente atual?
Se nenhum homem é uma ilha, como cunhou o filósofo Teilhard de Chardin (“no men is an island“, no original), é fácil entender que os desabafos expressos nas canções de As Profundezas de um Tempo Danger não representam apenas Dow Raiz (e seu time de produtores, composto por NAVE Beats, Madu, BP nos Beats, Dem Beats, Hupalo, Dario e Leo Spectrum), este um “guerreiro do rap, sempre em alta voltagem”. Se seus olhos assimilaram a turbulência em que vivemos e suas rimas expressam essas indignações, elas encontram eco na mente de outros tantos que sabem que o hip hop é responsável por retratar realidades e servir como registro histórico de um tempo em que “a guerra invadiu a cidade”. Dow Raiz canta por outros, ainda que utilize a si como ponto de partida.
O EP representa uma fase de transição do rapper curitibano que extrapola as mudanças geográficas, ainda que moldada, também, por elas. Abre-se uma infinidade de possibilidades por essa abertura a outros ritmos, que só confirmam que nenhum artista talentoso é estanque – e muito menos um gênero musical tão popular como o rap. Deem graças por poder acompanhar esta fase transitória, e um tanto frutífera, de Dow Raiz.