Que Chico Buarque é um dos maiores artistas da música brasileira, ninguém (em sã consciência) discute; que foi um dos mais perseguidos pela censura durante a Ditadura Militar também não é novidade. Mas há de se ressaltar que o momento conturbado pelo qual o país vivia também exigiu de Chico o exercício pleno de seus talentos. Ele foi um dos compositores com maior número de canções mutiladas ou vetadas integralmente pela censura durante as décadas de 1960 e 1970, e seu primeiro embate com os censores aconteceu em 1966, por conta da música “Tamandaré”.
Chico Buarque compôs a canção para que fizesse parte da trilha sonora do musical Meu Refrão, espetáculo de Hugo Carvana e Antônio Carlos Fontoura. A censura considerou que a menção ao almirante Tamandaré, cuja figura estampava as notas de 1 cruzeiro, era ofensiva. Todavia, em virtude da censura, Chico compôs “Noite dos Mascarados” para substituir “Tamandaré”, gravada somente em 1991 pelo grupo Quarteto em Cy.
O espetáculo Roda Viva, baseado em canção de mesmo nome, sofreu ataques do Comando de Caça aos Comunistas durante apresentação em São Paulo. Mas foi com o recrudescimento da censura, especialmente a partir do Ato Institucional nº 5, que Chico enfrentou seu maior desafio: traduzir o descontentamento do povo brasileiro com os rumos políticos do país. Metáforas e outras sutilezas textuais, por vezes até incompreendidas, eram as principais ferramentas do músico, nem sempre sendo bem assimiladas pelo público.
Exemplo disso aconteceu com “Sabiá”, parceria de Chico com Tom Jobim. Concorrente do III Festival Internacional da Canção, “Sabiá” venceu “Pra Não Dizer que Não Falei das Flores”, a icônica canção de Geraldo Vandré, segunda colocada e preferida do público, já que deixava de lado qualquer sutileza e escancarava questões políticas e sociais. Resultado: uma sonora vaia por parte do público que lotava o Maracanãzinho e não achava suficiente o subtexto da canção de Buarque e Jobim, que narrava a volta do exílio de pessoas próximas (“Vou voltar, sei que ainda vou voltar para o meu lugar / Foi lá e é ainda lá que eu hei de ouvir cantar uma sabiá”).
Ele foi um dos compositores com maior número de canções mutiladas ou vetadas integralmente pela censura durante as décadas de 1960 e 1970.
Construção, talvez seu maior trabalho, completa 45 anos em 2016. E um episódio acontecido no ano anterior ao lançamento determinou o futuro das próximas composições do compositor. Recém-contratado pela Philips, o músico lançou um compacto simples com a canção “Apesar de Você”, cuja letra era abertamente crítica à ditadura e passou despercebida dos censores, que só notaram o erro quando o compacto havia atingido a marca de 100 mil cópias vendidas.
Não adiantou mandar recolher os LPs das lojas: a canção já estava na boca dos brasileiros. Acontece que isto foi determinante no processo de montagem de Construção, e Chico Buarque confidenciou isto em entrevista ao jornal Folha de São Paulo, veiculada no caderno Ilustrada de 31 de julho de 1971. “Para fazer o meu LP com doze músicas, tenho que mandar 36 para a censura, e se eles deixarem passar, agradeço”, desabafou o cantor logo após ter cinco das músicas submetidas à Censura Federal proibidas. Para não correr o risco de que voltassem atrás nas que já haviam sido liberadas, algumas das faixas de Construção foram lançadas antecipadamente, entre elas “Minha História”, à época também chamada de “Menino Jesus”.
Contudo, o mais curioso episódio da época aconteceu com a canção “Bolsa de Amores”, um samba que Chico havia feito para Mário Reis e que foi integralmente vetado. “Era uma brincadeira que eu fiz com o Mário Reis porque ele gostava muito de jogar na bolsa, tinha mania dessas coisas… Era a época em que só se falava em bolsa”, contou a Geraldo Leite, da Rádio Eldorado. “Era uma brincadeira pro Mário Reis, sem nenhuma implicação política, mesmo porque o Mário era uma pessoa absolutamente distanciada da política”. Segundo o texto completo do veto, publicado no dia 21 de julho do 1971, a canção foi proibida porque Chico estaria “muito preocupado em denegrir a reputação de todas as mulheres”, já que “Minha História” relataria “a vida de um homem filho de uma prostituta”.
Não por acaso, Buarque passou a assinar suas músicas como Julinho da Adelaide. Seu heterônimo foi a saída para que “Acorda Amor”, “Jorge Maravilha” e “Milagre Brasileiro” passassem sem maiores problemas pelos censores. “É evidente que uma vez proibido, ficava marcado. Eu e outros autores que tínhamos uma ou outra música proibida ficávamos numa espécie de índex da censura. Então a música que chegava com o meu nome chamava a atenção. E eu comecei a sofrer uns cortes bastante arbitrários” confidenciou o músico a Geraldo Leite. “As três primeiras músicas que eu mandei, onde eu assinava como Julinho da Adelaide, passaram. Se fossem com o meu nome, provavelmente, não passariam”, completou.
E o recurso funcionou, ainda que por pouco tempo, e gerou uma inusitada entrevista para Mário Prata, no jornal Última Hora. A ideia partiu do próprio Prata, amigo de longa data de Chico. Mário consultou o diretor do jornal, Samuel Wainer, a respeito do papo, e este comprou a ideia na hora. “O Samuel era mais louco que nós dois juntos. Achou engraçadíssimo e falou pra fazer”, contou o repórter e autor de teatro. “Foi uma noite maluca, tinha bastante gente lá e, a partir de certo momento, todo mundo já bêbado, foi uma zona. Virou entrevista coletiva”.
Mais de quarenta anos depois, o registro de quase uma hora virou disco, lançado juntamente com um almanaque escrito por Prata e produção visual do artista plástico Elifas Andreato. Foram 10 mil exemplares distribuídos para clientes, colaboradores e parceiros do escritório de advocacia Pinheiro Neto. De dar inveja.
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