“A articulação entre o sexismo e o racismo incide de forma implacável sobre o significado do que é ser uma mulher negra no Brasil. A partir do racismo e da consequente hierarquia racial construída, ser negra passa a significar assumir uma posição inferior, desqualificada e menor. Já o sexismo atua na desqualificação do feminino.”1
Definitivamente, não tenho a mínima condição de expressar o que seja “ser mulher no Brasil”, ou mesmo em qualquer lugar do mundo. Pior ainda, o que é “ser uma mulher negra”. Sabemos de certo que ser mulher é estar inserida num ciclo de marginalização, amplificado quando você é uma mulher negra. Nenhum avanço, ainda, foi o suficiente para produzir alterações imediatas na vida das mulheres. Não bastasse isso, os veículos de comunicação e grande parte da sociedade civil aceitam e compactuam com a delimitação do debate sobre o feminismo ao dia 08 de março.
Toda importância carregada na mínima simbologia apregoada a esta data não pode e nem deve ser desmerecida, mas ainda devemos lutar e oferecer espaço para que as mulheres possam, finalmente, atingir o mínimo que se espera de uma sociedade pautada pelos direitos humanos: a igualdade de gênero em todos os âmbitos.
O 8 de março joga luz ao debate, mas deve, ainda, servir como um indicativo de como o sexismo vem limitando a voz feminina na cultura. E, por mais que a escolha do artista da coluna desta semana possa ser entendida como um reflexo da data, é importante frisar que A Escotilha, enquanto um portal que se coloca na missão de refletir a produção cultural, acredita e se posiciona lado a lado com a luta feminista.

O 8 de março joga luz ao debate, mas deve, ainda, servir como um indicativo de como o sexismo vem limitando a voz feminina na cultura.
Preta-Rara vem de Santos. Preta-Rara vem do rap. Preta-Rara é mulher, e mulher negra. Com o dom da palavra e da poesia do “repente-do-rap”, Preta-Rara, no alto de seus 30 anos, ingressa na carreira solo, trazendo consigo a acidez que mergulha nas entranhas que escondem nossas mais puras mazelas – e preconceitos.
Audácia é um nome muito propício ao disco. Depois de 7 anos no grupo feminino Tarja Preta, Joyce Fernandes, a Preta-Rara, seguiu o valioso incentivo de Criolo, que a instruiu a seguir carreira solo. Produzido por Iuri Stocco, do estúdio CoisaSimples, Audácia contém oito músicas e dois poemas. Nele, Preta-Rara apresenta relatos bem sinceros sobre ser mulher e negra em um país onde, apesar de predominantemente negro e feminino, ela é ensinada a viver à margem do mundo, quase como um corpo estranho.
A poetisa Mel Duarte abre Audácia declamando “Não Desiste”, uma espécie de manifesto pela luta contínua da mulher negra. “Não desiste negra, não desiste / Ainda que tentem lhe oprimir e acredite / Eles não vão parar tão cedo / Quanto mais você se omitir / Eles vão continuar nossa história escrevendo.” Professora de História para jovens do Ensino Fundamental II na periferia de São Vicente, Preta-Rara também usa o hip hop como instrumento pedagógico em sala de aula. Rimas certeiras são despejadas ao longo do trabalho, que mescla samples de músicas brasileiras e gangsta rap.
Em entrevista ao Portal Áfricas, exatamente próximo ao Dia Internacional da Mulher do ano passado, Joyce disse: “Embora as mulheres tenham conquistado autonomia e condições um pouco mais equânimes, ainda não há muito o que se comemorar neste dia, já que o machismo ainda opera em todos os aspectos da vida das mulheres, desde os padrões estéticos, a divisão do trabalho doméstico, as responsabilidades morais em relação à maternidade, entre outros.”
E, ainda que tenha havido um movimento em trazer à luz o debate sobre igualdade de gênero no último ano, a verdade é que pouco caminhamos, o que torna o trabalho de Preta-Rara e canções como “Negra Sim” e “Conto de Fadas” dolorosamente reais e atuais por colocarem o dedo em nossas feridas. Precisamos refletir – e mudar.
1 II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres.