A devoção a um artista é das poucas coisas no mundo capaz de fazer um fã atravessar os mais de 1200 quilômetros, ou quase 18h, que separam a Rodoviária de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, do Terminal Rodoviário do Tietê, na capital paulista. Mas foi isso que uma jovem fez em 1998 para ver o Smashing Pumpkins. 26 anos depois, essa mesma pessoa estava diante de Billy Corgan e seus companheiros no Espaço Unimed para conferir o segundo show do grupo no Brasil com a turnê World Is a Vampire.
Muita coisa mudou de lá para cá, não só na fã personagem do parágrafo anterior, mas na música como um todo – e, claro, na banda personagem desse texto. O Smashing Pumpkins já foi uma das maiores bandas do mundo, se não efetivamente, pelo menos para Corgan e seus fiéis seguidores. Arrisco dizer que o músico não estava de todo equivocado: genial como poucos de seus contemporâneos, entregou alguns dos grandes hits do rock dos anos 1990, além de um álbum incontornável para os indies (a meu ver, Mellon Collie and the Infinite Sadness, mas permito ao fã determinar qual o seu).
Todavia, a dissonância entre o que ocorria no universo da música e a percepção do líder do Smashing Pumpkins sobre si sempre foi uma pedra no sapato – do grupo, é claro, mas do próprio Billy Corgan. O líder da banda foi, ironias da vida, seu algoz e arqui-inimigo, capaz de implodir os Pumpkins para gravar dois álbuns de gosto duvidoso com a Zwan, depois de fazer coisa semelhante com o próprio SP. Mas os artistas trazidos pela Balaclava, em sua maior jogada no ramo do entretenimento musical até então, não são os mesmos que aquela fã de 1998 viu – para o bem e para o mal.
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Em 2005, quando o Pearl Jam veio ao Brasil pela primeira vez, entendi de modo concreto que fãs podem ter raiva de suas bandas… ou de seus músicos prediletos. Não faltaram momentos em que o público vociferava contra Eddie Vedder e seus comandados, pelos motivos mais abstratos. Ontem, no Espaço Unimed, parte considerável do público também estava ressabiada: que Pumpkins iria se apresentar, o do tenebroso show no Planeta Terra de 2010, ou o do feijão com arroz do Lollapalooza de 2015?
Como a fã de 1998, Billy Corgan não é mais o mesmo. Maduro, pai e tentando recolher os cacos do grupo para dar sentido ao seu lado artístico, o líder dos Smashing Pumpkins vinha dando sinais nos últimos anos de um amadurecimento real. O movimento vinha desde Shiny and Ok So Bright, Vol. 1 / LP: No Past. No Future. No Sun. (2018), e se manteve até o registro mais atual, Aghori Mhori Mei, uma tentativa honesta de diálogo com a trajetória do grupo de Chicago. Todavia, os devotos seguidores seguiam consternados com a apresentação de 2010, ao ponto de parcela considerável ter chegado desanimada – o que em nenhuma medida respingou na venda de ingressos, cujo espetáculo garantiu um sold out e a lamentação (do SP mesmo) por uma data extra não ter se concretizado em virtude da falta de agenda das casas de show em São Paulo.
Pontualmente, às 20h15 de domingo, os Smashing Pumpkins subiram ao palco do Espaço Unimed. Aos primeiros acordes de “The Everlasting Gaze”, seguidos por “Doomsday Clock” e “Zoo Station”, em um curioso momento U2 da apresentação, a audiência pareceu baixar a guarda. A partir daquele instante, Corgan e seus companheiros perceberam que podiam ter o Espaço Unimed nas mãos, e emendaram a primeira sequência de clássicos do grupo, passando por “Today”, “Tonight, Tonight”, “Ava Adore” e “Disarm”.
Entre uma faixa e outra, o líder da banda procurava se conectar com os fãs, seja indicando seu coração, seja se esforçando em diálogos um tanto peculiares com James Iha. Para o público, parecia importar pouco se era postura ensaiada ou se os artistas falavam chinês, havia um transe – e muita comoção, explicitada pelas lágrimas que rolaram em muitos rostos na casa de show.
Havia um transe – e muita comoção, explicitada pelas lágrimas que rolaram em muitos rostos na casa de show.
Com direito à interpretação de “Landslide”, do Fleetwood Mac, e “Shine On, Harvest Moon”, blues quase centenário de Ruth Etting, interpretado solo por Billy Corgan, e surpresa pelo ineditismo na tour, a banda de Chicago caminhou para a metade final da apresentação. “Mayonaise”, “Bullet With Butterfly Wings”, “1979”e “Jellybelly” foram entoadas em uníssono, e tocadas alto, com entrega de quem, ao que tudo indica, sabia que estava em dívida. Corgan não voou pelos braços do público, mas seus riffs foram carregados nos braços de quem lá estava presente, rendidos e de coração amansado. A banda estava perdoada por 2010, e aquela sensação de revolta se dissipou sobre uma São Paulo chuvosa.
Entre gracejos com os presentes e uma peculiar tentativa de alongar a apresentação para próximo de duas horas, os membros da banda tocaram “Cherub Rock”, mas só depois de insinuar “Thunderstruck” (AC/DC) e “Iron Man” (Black Sabbath). Foi então que os fãs e a chuva se espalharam pela casa na Barra Funda às primeiras notas de “Zero”. Era a Santa Ceia de quem por mais de 30 anos segue aquele careca mal-humorado de Illinois. No lugar de “isto é o meu corpo” e “fazei isto em minha memória”, os Smashing Pumpkins finalizaram com outra surpresa: um bis não previsto (ou que não estava sendo feito durante a The Saviors Tour, em que abrem para o Green Day), encerrando a noite com Iha entoando os versos de “Ziggy Stardust”, de David Bowie. Pazes feitas.
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